Vidabrasil circula em Salvador, Espírito Santo, Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo Edição Nº: 306
Data:
15/5/2002
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» Índice
» Editorial
Entre o real e o imaginário
» Autos
Bentley Arnage Red Label: motor, suspensão, câmbio e freios controlados por computador
» Momento
Kátia e Ruy Sampaio curtindo o agradável Villa Gourmet, restaurante comandado pela filha Flávia
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Brasileiros bem sucedidos em New York, dirigem o Alphabet Kitchen, restaurante da moda
» Boca Miuda
Papo ao vinho
» Triangulo
Na inauguração da expansão do Shopping Vitória, Américo Buaiz Filho recebe a Comenda Jerônimo Monteiro
Dossiê

Morreu como um César americano, perante o seu povo. Os mil dias em que foi presidente tiveram a duração perfeita para a construção do mito de Camelot. Ao ser eleito, há 40 anos, inaugurou a figura do líder político com o esplendor de uma estrela de cinema e os ideais de uma era de mudança. Foi amante de Marilyn e sofria da coluna. Tomava banho cinco vezes ao dia e tinha doenças venéreas. Mandou eliminar Fidel e aliou-se à máfia. Anunciou uma era de igualdade e fazia parte de um clã. Defendeu a paz e iniciou a guerra do Vietnã. “Jack” Kennedy fez vibrar o mundo. Terá a sua herança deixado semente?  
 
No sonho que alimentava de inaugurar com a sua família a primeira dinastia republicana num regime democrático, Joe Kennedy olhava para o filho e reconhecia nele, não o político que podia chegar a presidente, mas o ator com a aura das estrelas de cinema que entraria na Casa Branca para desempenhar o papel mais importante no teatro do mundo. Joe Kennedy foi o Cecil B. De Mille de uma superprodução grandiloqüente e desmesurada, usou de todo o seu poder e influência junto da classe política, empresarial e até do submundo para consegui-lo, mas caberia aos filhos escrever a história.  
Que personagem desempenhou então John Fitsgerald Kennedy, ao tornar-se presidente dos Estados Unidos em 8 de novembro de 1960? A avaliar pelos mil dias da sua presidência, inventariados por si no discurso de Dallas que nunca chegou a dizer, a sua liderança teve a ambição de um imperador da era midiática.  
Expandiu e modernizou o poder nuclear dos Estados Unidos, duplicou os orçamentos de programas de defesa, investiu por ano em programas espaciais o que se tinha gasto na década de 50, ampliou a margem de atuação da CIA no controle marginal da política externa e defendeu a criação de uma “pax americana” que veio a diluir-se numa série de conflitos espalhados pelo mundo.  
“Jack” Kennedy largou mais sementes do que colheu frutos, e uma boa parte da sua mensagem foi empacotada quando desapareceu. No discurso inaugural do seu mandato, afirmou: “Se uma sociedade livre não consegue ajudar os muitos que são pobres, não poderá salvar os poucos que são ricos”, defendendo o seu programa de ajuda aos países necessitados e incitando à mobilização nas “forças de paz” que tinha criado meses antes. A propósito do esfriamento de relações com a União Soviética, causado pela destruição de um avião U2 durante a administração de Eisenhower, acrescentou: “Norte, sul, leste, oeste... poderemos assegurar uma vida mais frutuosa para a humanidade? Estão dispostos a fazer esse esforço histórico?”. E de fato, após a sua saída de cena e de Krushchev, a guerra fria endureceu e o tratado de eliminação de testes nucleares foi ignorado.  
“Jack” Kennedy tinha sido o primeiro fenômeno de um político enquanto produto de marketing. Promovido a ídolo antes de ser ídolo, as circunstâncias transformaram-no no entanto, e de forma irreversível, num mito da era moderna, sendo esquecido o realismo de algumas das suas propostas, que só o tempo veio a recuperar.  
A escalada do clã Kennedy na hierarquia americana ultrapassou os circuitos de poder para se estilhaçar numa apoplética série de tragédias tão eloqüentes quanto os clássicos gregos. “Jack Kennedy, personagem de contradições lendárias, acrescentar-lhe-ia um tom burlesco. Se a versão oficial da história o recorda um César duro mas compassivo, com uma apaixonada crença no seu trabalho, as aparas da iconografia desvendam também um comediante aprisionado nas malhas da sua própria sátira.  
Com a altivez de um “red neck” educado para ser um “grande Gatsby”, aparentava ser um irlandês, afável e inquiridor, dono de um sentido de humor mordaz a que não escapava a auto-ironia.  
Chegada a hora de largar uma piada, nem sempre brincava: “Acabei de receber este telegrama do meu perigoso pai, que diz: Querido Jack, não compre nem mais um voto, a não ser que seja necessário. Raios me partam se tiver de pagar a conta de uma vitória retumbante”. Quando fez esta afirmação num jantar de campanha, os eleitores riram. Poucos imaginavam, no entanto, que a semelhança com a realidade era o tema de chacota.  
Ao vencer em novembro de 1960 as eleições presidenciais contra o republicano Richard Nixon, JFK inaugurou uma era de oportunidades e objetivos que chamou de a “nova fronteira”, desenhando um mundo onde a lei tornasse “os grandes justos” e “os fracos seguros”. Os anos 60 vieram a revelar de fato um novo paradigma e uma ruptura com os usos e costumes do passado. JFK faz hoje parte da galeria de rostos dessa nova era, só que, mais do que nunca, fica a dúvida: a morte impediu-o de desencadear a mudança, ou apenas interrompeu um ciclo de abuso de poder, travestido de modernidade pelos meios de comunicação que controlou?  
O charme pós-juvenil de JFK conferiu-lhe a beatitude de um líder do povo, com um sentimento de grandiosidade que só a América podia sustentar. Era um homem apaixonante que sabia esconder o político astuto. Mas, por trás dessa devoção fotogênica, que alcance tinham as suas palavras?  
Quando defendeu em Berlim o valor da liberdade e afirmou “eu sou um berlinense”, emocionou a Alemanha separada, mas o muro tinha sido construído em pleno Centro da Europa e JFK não resistira às ameaças apocalípticas de Krushchev.  
Quanto à falta de oportunidades dadas aos negros na sociedade racista americana, disse: “Devemos a eles e a nós próprios melhor do que isso”. Avançou com o processo dos direitos civis e repudiou o segregacionismo, valendo-lhe uma forte quebra de popularidade nos estados do Sul, mas a sua indiferença só acabou depois de uma série de confrontos violentos.  
Numa das suas imagens mais célebres, JFK é visto de costas, curvado sobre a mesa do seu gabinete na Casa Branca. A luz etérea que os cortinados moldam enobrece a pose dramática. Parece representar o significado do poder: ei-lo, suportando entre os ombros todo o peso e a responsabilidade do mundo. O fotógrafo George Tames, que o captou de imprevisto, verificou depois que estava ele estava lendo o “New York Times”, comentando sorridente: “Aquele malandro do Arthur Krock!”. Referia-se a um jornalista cúmplice de longa data da família e que fez carreira escrevendo artigos de encomenda desde a entrada de Joe Kennedy para a administração de Roosevelt. O peso do mundo tinha por vezes a espessura de uma folha de jornal.  
Enquanto chefe de família extremoso, o retrato não foi menos corrigido. É certo que o envolvimento com Marilyn Monroe sempre foi discutido, apesar de um seleto circuito em Hollywood sempre ter sabido da relação. Mas a “candle in the wind” do cinema americano era única e as amantes do presidente foram muitas, transformando a atriz no mero capítulo de um livro com vários volumes. Por bem menos, Clinton teve que se submeter aos homens da lei e enfrentar um processo de “impeachment”, sem no entanto ter sido alguma vez acusado de bigamia. Adúltero, sim. Promíscuo, sim. Mas bígamo, não.  
Apesar da alegada perfeição conjugal Jack-Jacqueline, Kennedy teria se casado secretamente em 1947 com uma jovem da alta sociedade de Palm Springs, Durie Malcolm, nunca chegando a divorciar-se. Em poucos dias, o casal separava-se e os documentos do casamento desapareciam. “Jack” casou-se oficialmente pela primeira vez seis anos mais tarde.  
Já na Casa Branca o trânsito de mulheres chegava a ficar congestionado, mas ainda lhe sobrava a voracidade para distribuir os seus casos por escritórios particulares e fins-de-semana nas casas dos amigos de Hollywood, como Frank Sinatra (o seu embaixador no submundo do crime organizado) ou Bing Crosby.  
A devassidão pagou-a, no entanto, com juros. Jovem de saúde frágil, JFK cresceu longe da libertinagem sexual dos eufóricos anos 30, e se iniciou tarde na filosofia de alcova. Presa fácil das infecções – tinha a doença de Addison –, um futuro promíscuo viria a compensá-lo pelos anos de abstinência, cumulando-o também de doenças venéreas, que reincidiam ciclicamente, pela forma como cirandava de parceira em parceira.  
Ignora-se a obsessão que tinha por banhos – tomava cinco por dia, e de imersão. Teria a ver com a recordação  
de alguma gonorréia mais traumatizante. O certo é que afogava as dores dentro d’água. Os problemas de coluna, que suportava estoicamente sem queixas, eram atenuados no banho. Alguns dos seus assistentes e amigos recordam mesmo que era na banheira que mais gostava de ler, que se deixava levar  
pela conversa, acompanhado eventualmente pelos brinquedos dos filhos. Willian Walton, um dos seus amigos íntimos chegou mesmo a ouvi-lo dizer: “Que pensariam as pessoas se vissem o presidente dos Estados Unidos numa banheira com estes patos?”.  
Era uma preocupação ingênua, se pensarmos nas especulações de orgias em que participou com mulheres mascaradas, nas centenas de gravações que tinha de conversas com amantes e cúmplices políticos pouco escrupulosos, nos arquivos com programas de eliminação dos chefes de Estado Patrice Lumumba, Rafael Trujillo e Ngo Dinh Diem (o presidente do Vietnã do Sul que chegou a conhecer na juventude, quando fugiu a uma sentença de morte imposta por Ho Chi Minh).  
Fidel Castro era a principal obsessão de JFK e do seu irmão e colaborador, Robert. O problema de Cuba foi mesmo um dos temas prioritários durante a campanha presidencial que disputou com Nixon. Era uma arma de arremesso que muitos constrangimentos causou ao candidato republicano, que se via de mãos atadas sendo queimado pelo charuto de Fidel.  
A eliminação de Castro fazia parte da agenda secreta da administração de Eisenhower, ao ponto de a CIA ter-se envolvido com a máfia para resolver o problema antes das eleições. E enquanto Nixon fazia internamente pressão para que o assunto fosse resolvido, não podia sequer discutir o tema em público. Na sua obscena hipocrisia, o debate foi risível, ao ponto de a opinião pública julgar que Nixon preferia abordar Castro através de diálogo.  
Kennedy acusava os republicanos de não conseguirem solucionar a ameaça comunista, a pouco mais de cem quilômetros da Flórida e ameaçando espalhar-se pelo resto da América Latina. Mas sabia que o processo estava em curso, uma vez que o diretor das operações clandestinas da CIA e responsável pessoal pelo plano contra Castro, Richard Bissel, era seu aliado. Não menos importante, Sam Giancana, o chefe da máfia de Chicago (que tinha ajudado JFK, com a interferência de Joe Kennedy, a ganhar as eleições no Illinois, através da compra e falsificação de votos), era dono de cassinos em Havana e estava envolvido no projeto de assassinato do líder cubano. Protelar a operação para depois das eleições convinha tanto a Kennedy como a Giancana, que esperava com a vitória democrata uma maior condescendência do FBI com os seus negócios.  
Os debates pela TV, inaugurado nessas eleições, mostraram a descontração esportiva e elegante com que cilindrou Nixon, acabrunhando nos seus complexos de inferioridade. Mas a verdade é que nas urnas a divisão de votos ficou quase por ela e o futuro de Camelot decidiu-se por apenas 118 mil votos, num universo de 68 milhões de eleitores. Os métodos de Sam Giancana demonstravam, no entanto, que o ex-colaborador de Al Capone era mais eficaz na fraude do que no homicídio, uma vez que as tentativas posteriores de eliminar Fidel resultaram em fracasso.  
Kennedy avançou então com a desastrosa tentativa de invadir a Baía  
dos Porcos, provocando a crise dos mísseis. Não deu cabo de Fidel, mas conseguiu uma vitória política, obrigando Krushchev a retirar os mísseis de Cuba.  
Quanto a Nixon, depois de comer a língua durante a questão cubana, teve de mastigá-la outra vez e digerir em silêncio os alegados casos de fraude eleitoral. Poderia ter pedido uma recontagem dos votos, mas se perdesse na mesma os efeitos seriam devastadores para a sua carreira política.  
O tarefa de acabar com a guerra que Kennedy tinha iniciado no Vietnã estaria destinada a Nixon na década seguinte – sem que isso tirasse quaisquer dividendos para a história. Mas JFK, triunfal na memória do seu povo, morreu com uma derrota na batalha que tinha iniciado contra o líder de um país com menos população do que Nova York. É que, no dia em que JFK foi assassinado em Dallas, Cubela, um antigo revolucionário cubano, era contratado pela CIA para eliminar  
Fidel com uma seringa disfarçada de caneta e com veneno dentro. Apesar  
do engenho da arma, 40 anos depois a injeção ainda não foi dada.  
No desempenho da sua comédia burlesca, JFK julgou-se sempre imune, como um Charlot de cartola que pinta a manta e sai de fininho da confusão por ele provocada. Acabou por ser vítima de um detalhe digno de um filme de humor negro. No momento em que foi alvejado em Dallas, sentado na parte de trás de um conversível, usava por baixo da camisa dois aparelhos: um amparava-lhe as costas (por causa do seu crônico problema de coluna), o outro imobilizava-o numa posição vertical dos ombros até a pélvis (devido a uma queda mal amparada). O primeiro tiro, que o atingiu no pescoço, não era mortal. Se tivesse caído para o lado, ou o seu corpo se dobrasse, provavelmente teria se salvado. Só que os aparelhos imobilizavam-no e manteve-se ereto, numa rígida postura de boneco de tiro ao alvo. O que deu tempo a Lee Harvey Oswald de disparar uma segunda vez e atingi-lo na cabeça.  
Algum tempo antes, um rapaz perguntou a Kennedy como é que tinha se tornado herói de guerra. O presidente deu uma resposta espirituosa: “Foi completamente involuntário, afundaram o meu barco”. A sua mitificação, após o atentado de 12 de novembro, teve algo de semelhante. Quanto às motivações do crime, fazem parte da lenda

  












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