Vidabrasil circula em Salvador, Espírito Santo, Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo Edição Nº: 326
Data:
15/3/2003
Capa | Edições anteriores| Assine já | Fale com a redação
Página visitada: 1884502 vezes
» Índice
» Editorial
75 dias de Paulo Hartung
» Autos
Pela primeira vez um modelo da Honda, o Fit, é recorde de vendas no Japão, com pouco mais de 250 mil unidades
» Social Light
Social Light
» Turismo
Alpes franceses
» Saúde
Indústria farmacêutica pesquisa e descobre no fundo do mar verdadeiros tesouros para a medicina
» Passarela
Confirmado como o maior evento do carnaval baiano,  
a “Feijoada do Mar” é sucesso na área verde do Othon

» Boca Miuda
aulo Hartung acaba com escritório de representação do ES e pede ajuda a bancada federal para desempenhar este papel
» Triângulo
Com a inauguração do terminal marítimo da Aracruz o tráfego da BR 101 está livre das carretas de eucalipto
Entrevista

No olho do furacão  
 
A crise política do Espírito Santo, acentuada nos dois últimos anos do governo de José Ignácio Ferreira e, agora, com um novo e sensacional capítulo envolvendo os três poderes e a eleição da nova Mesa Diretora da Assembléia Legislativa, transforma o Estado num laboratório para os estudiosos do assunto. E, longe da prática de valorizar o que está distante, VidaBrasil busca na inteligência local uma análise científica dessa realidade.  
Marta Zorzal, 50 anos, a primogênita de 12 filhos de uma família de pequenos proprietários rurais de Venda Nova do Imigrante, região serrana do sul, é uma das maiores especialistas em estudos sobre o Estado. É chefe do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), onde é professora de Política, Formação Política do Espírito Santo e Realidade Regional, esta disciplina para o curso de Comunicação Social.  
Fez seus estudos primários em sua cidade, mora em Vitória desde os 12 anos, graduou-se em Administração pela Ufes em 1979, fez mestrado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (1981-82) e em sua tese de doutorado desenvolveu estudos sobre o “Espírito Santo – Estado, Interesses e Poder”. Portanto, está qualificadíssima para analisar o atual momento capixaba à luz de uma construção histórica.  
Sua entrevista durou quatro horas, e os melhores momentos estão a seguir. Marta Zorzal faz profunda análise da formação política e econômica do Espírito Santo, salienta como esses processos estão vinculados, primeiro à presença da Companhia Vale do Rio Doce e, depois, também aos grandes projetos industriais. Mas é taxativa em acusar a classe política de não ter acompanhado a modernização que faz do Estado a oitava economia do país.  
Desmonta mitos como Gerson Camata e Max Mauro, analisa as mudanças na Assembléia Legislativa, vê no novo governo a primeira tentativa, em 40 anos, de se planejar o desenvolvimento do Estado, mas prevê muitas dificuldades para o governador Paulo Hartung: “Ele não tem a mesma habilidade política de Lula”.  
– Eu gostaria que a senhora fizesse uma breve avaliação de como está enxergando o atual momento político do Espírito Santo.  
– É um momento positivo. Em sua história, o Espírito Santo vem num processo de modernização intenso. Esse processo de intensa industrialização gerou uma sociedade mais moderna, um novo empresariado, uma nova performance. Só que isso não se refletia no Executivo e no Legislativo. Há uma dessintonia entre o que ocorre na esfera econômico-social e na política. Essa sociedade moderna não tinha conseguido eleger representantes que expressassem essas mudanças.  
Tinha-se, então, um padrão de sociedade moderna com um padrão de governo ainda muito arcaico, tradicional, coronelista. Uma Assembléia eleita com o voto coronelista, uma expressão do voto rural mais do que o urbano. Agora em 2002 é que esse padrão muda. Elegeram-se representantes com sintonia maior com essa sociedade, refletindo esses novos interesses, urbanos, do operariado, do novo empresariado. Não mais o interesse rural, com vínculos verticais, mas uma sociedade mais horizontalizada. Mas tenho chamado a atenção para o que acontece no Brasil, que é o voto esquizofrênico.  
– O que vem a ser esse voto esquizofrênico?  
– Em geral, a sociedade vota, com esperança de mudança, num Executivo progressista. Mas, para o Legislativo, como não sabe exatamente qual sua função, vota naquele fulano que é amigo porque essa sociedade tem tradição autoritária. Você ainda precisa de mediações que passam pela clientela. Para resolver problemas você busca alguém que conhece. Então, vota no Legislativo com essa idéia, no amigo, que abre as portas. E isso não é só o pobre, é também a classe média, que quer um carguinho.  
No Executivo se vota em alguém que vai mudar o mundo, e no Legislativo em alguém que vá resolver seus problemas particulares. Na prática, se vota na tensão, porque o Executivo para mudar precisa de alguém que pense política públicas de longo prazo, formas de ação política de longo prazo, mas para isso, na democracia, precisa do Legislativo, que por sua vez tem uma série de deputados, cada um com sua clientela, suas coisas para resolver, e que não quer pensar o longo prazo porque tem as próximas eleições municipais e já está pensando nelas.  
Então, ele não quer o programa, mas o varejo, e pressiona por ações pequenas, que atendam às suas demandas – é o calçamento da rua, o asfaltamento da estrada, a escola, a ponte, que vai gerar uma pulverização de problemas e questões que, se não tiver um processo mais articulado, vai ficar atendendo caso a caso e não faz a política pública mais abrangente.  
Se tem uma Assembléia assim, sem uma maioria orgânica, tem a famosa política do é dando que se recebe e, aí sim, a década de 90 no Espírito Santo foi fértil nessas negociações escusas no sentido de atender no varejo, sem uma visão de futuro para o Espírito Santo, sem um projeto que pense alternativas de médio e longo prazos. Perde o tempo negociando benesses, amarrado na esquizofrenia desse voto.  
Temos hoje uma Assembléia hiperfragmentada, com 14 partidos e onde você não consegue montar um grupo relativamente orgânico em termos de um projeto de futuro, embora tenha hoje o grupo de 11 parlamentares da base governista. Isso vale para o Brasil como um todo.  
– Essa mudança de eixo político que a senhora está mostrando, do voto representativo dessa nova sociedade mais moderna que se constrói, saindo do voto rural para o urbano, foi o resultado das articulações de um grupo político ou o despertar de consciência dessa sociedade?  
– Havia uma pulverização muito grande do voto na Grande Vitória, que desde meados dos anos 80 já concentra mais de 80% da população urbana do Espírito Santo. Até os anos 70 a maior parte da população era rural e fazia jus a uma Assembléia com o perfil de maior representação rural. Só que isso não inverte quando a população se modifica. Até as eleições de 1998 se tinha uma representação muito mais rural do que urbana.  
– Mas isso não seria o resultado de se ter como urbana uma população que na verdade vinha do interior e que, por isso mesmo, continuou votando nos seus representantes dos chamados grotões?  
– É isso mesmo. Uma urbanização da população, mas que continua rural em sua mentalidade. Isso só muda depois que vence uma geração. Somente agora em 2002 é que muda isso e vou explicar porque não foi um movimento articulado.  
Ao longo dos anos 90 uma série de mudanças acontecem. O fato de o governo do José Ignácio e a Assembléia terem ido para o banco dos réus motivou uma trabalho sério de todos os partidos no sentido de mudar a Assembléia. Isso acabou refletindo na mudança desse voto e a maior expressão do voto urbano.  
E têm um grande papel aí as igrejas, que vão investir muito na idéia do voto ético, na renovação. Além das igrejas, os meios de comunicação também investiram muito na mudança. Foi evidenciado muito os vínculos escusos da Assembléia com o crime organizado, o que é incompatível com essa sociedade já moderna que estamos constituindo aqui, urbana e industrializada.  
Foi muito veiculado o bom desempenho do Espírito Santo, com a oitava economia do país, o que mostra que se tem uma economia moderna, e aqueles padrões de relacionamento antigos começam a ser questionados. Padrões do autoritarismo, do cerceamento de informações. Essas questões estando na agenda do dia refletiram nas mudanças da Assembléia, embora não se tenha mudado qualitativamente, porque não se têm partidos enraizados na sociedade, exceto o PT, que coloquem em debate as questões da política, projetos e propostas.  
Vê-se outro tipo de representação, a do líder evangélico, cuja liderança se expressa a partir de um outro corte que não é o político. Para o segmento dos excluídos, esse líder representa uma outra referência, do bom, da possibilidade da mudança, mas não percebe que ele não tem o vínculo orgânico partidário com uma proposta que pode levar ao novo. E tem muitos que, na verdade, se elegem por esse padrão da liderança religiosa, que não é construída nos quadros partidários, mas da igreja, com outras relações e vínculos.  
– Dentro desse contexto, como é que a senhora explica o fato de a nova Assembléia, que tem 30 deputados, ter seis deputados com esse perfil evangélico, portanto que chegaram com base numa proposta de mudança ética, mas que cinco deles tenham ficado na base conservadora, e apenas um na base do governo, com Cláudio Vereza?  
– Eles não têm exatamente esse padrão orgânico de um projeto de futuro, e não compreenderam nem mesmo o significado do voto que receberam. Estão lá com objetivo muito claro, daquela população que tem a religião como um gancho para essa mediação e que não tem formação política do que é o parlamento, essa vivência.  
É claro que, para eles, se articularem com aquele esquema é mais benéfico para trabalhar nessa linha da clientela do que pensarem num esquema diferente, que pode dar algum benefício, mas vai ter que passar por negociações mais abertas que estão no parlamento. Eles não têm essa vivência.  
– Diante disso, eles podem ser reputados de ingênuos politicamente?  
– Acho que sim, porque não têm formação no quadro partidário, falta-lhes a manha da política. Não é que não conheçam o mundo da política, mas trabalham na política dentro da lógica da religião, onde você não tem a clareza do significado da separação do que é público e privado. A igreja diz que vai conseguir benesses para sua clientela que são de alguma forma privados. Não têm a clareza também do universalismo dos procedimentos e da mediação pública das questões. De alguma forma aceitam negociações da política como um jogo em que você pode auferir ganhos pessoais.  
– Como é que a senhora vê o problema da perda de representatividade política de um interior que ano após ano vai ficando mais isolado e mais pobre? Tem-se ganho de um lado, com a modernização da representação política acompanhando a modernização da própria sociedade, mas há perda de outro, com o aumento do isolamento do interior.  
– Creio que isso pode acontecer sim, mas vai depender muito da visão do governo de como vai articular uma política de desenvolvimento econômico para todo o Estado e acredito que o grupo que chegou aí tem uma visão desse problema, da atração que Vitória exerce sobre o Estado e também sobre as periferias de Minas e Bahia, gerando problemas do ponto de vista econômico e social.  
Para que isso não aconteça é preciso fazer políticas econômicas para diversificar a economia e acho que o governo, até onde acompanhei, está atento para os setores emergentes da economia capixaba, como o de mármore e granito de Cachoeiro, o de fruticultura e moveleiro de Linhares, o de confecções de Colatina.  
Uma coisa que precisa ser clara é que, a partir do governo Camata (1982), nenhum dos governantes que chegaram ao poder tiveram a dimensão, hipernecessária para a sociedade moderna, que é a produção de um conhecimento e planejamento para intervir e incentivar certos setores. O Espírito Santo perdeu toda a inteligência que ele tinha construído na ditadura, como o Instituto Jones. Não possui um órgão com capacidade de gerar conhecimento sobre sua própria realidade para intervir de forma virtuosa, gerando políticas econômicas.  
Com o desenvolvimentismo implementado pela era Geisel (general presidente de 1974 a 78), o Espírito Santo começou a construir essa base de informação, com o Instituto Jones, em 1975. Só que com a chegada do governo Camata ele começa a desarticular esse órgão com os chamados trens-da-alegria. Um órgão para planejamento precisa de pessoas com capacidade de pensar e formular políticas públicas. Então, nenhum governo da democratização estadual conseguiu perceber a importância do Instituto Jones, que foi deixado para trás. Não se colocou nada no lugar dele. Nem uma Secretaria de Planejamento com capacidade de formulação. Mesmo o Bandes perde essa capacidade de formulação que tinha nos governos da ditadura.  
Isso faz com que o Estado vá a reboque dos grandes projetos. Quem dá o tom do processo de desenvolvimento do Espírito Santo não é o governo do Estado, mas as grandes empresas com os grandes projetos: Vale do Rio Doce, CST, Aracruz, Samarco.  
O que o Espírito Santo perde no período de 1980 a 2002 é a capacidade formuladora. Não tem inteligência. Mesmo na própria universidade não tem uma produção que gere uma formulação de uma política pública mais articulada com esse novo perfil que está se constituindo. Isso é o grande problema que o Espírito Santo viveu, e que acabou refém da Assembléia, porque não tem um projeto de futuro, não articula o velho com o novo, e vai a reboque.  
Agora, pelo menos com a correlação de forças que está no poder, essa aliança, pelo menos no discurso, propõe a formulação de um projeto de governo. Na prática é que vamos ver como isso vai se processar. Nós tínhamos isso no passado, projetos muito bons na década de 50.  
– Só para recuperar historicamente, quem a senhora destacaria nesse processo de formulação de projetos de desenvolvimento no Espírito Santo?  
– O primeiro projeto é famosíssimo, de 1892 a 1896, que é o projeto do Novo Arrabalde, do Moniz Freire, que projeta a Praia do Canto antes do século XX. Já era um projeto vanguardista. O Jerônimo Monteiro fez planejamento em 1908. Na década de 30 você tem um tenente, que é o Punaro Bley, que não é daqui mas que elabora um projeto de desenvolvimento para o Espírito Santo, depois o próprio Jones dos Santos Neves, o Carlos Lindenberg e o regime militar.  
– Esse planejamento dentro do regime militar (1964) foi fruto de uma articulação interna ou veio de fora, do poder central?  
– Tem-se uma concepção de desenvolvimento da era militar, do Brasil grande, Brasil potência, o famoso salto para incluir o Brasil na modernidade industrial. Dentro dessa lógica, é claro que se tem um Golbery do Couto e Silva, um estrategista, que trabalha a geopolítica do Brasil desconcentrando o desenvolvimento, levando a industrialização para outras regiões que não São Paulo e Rio de Janeiro. É aí que entram a Amazônia, a petroquímica na Bahia. E como o Espírito Santo entra nessa logística?  
O Estado primo-pobre do Sudeste apresenta uma possibilidade interessante. Está próximo à região Sudeste, com uma infra-estrutura interessante de ligações, já construída a partir do governo JK, e mais importante de tudo, a Ferrovia Vitória-Minas e a Vale do Rio Doce, empresa estatal que opera aqui e que é estratégica nessa política do governo militar de geração de divisas nesse processo de substituição das importações, através das indústrias básicas. O Espírito Santo se insere nesse projeto de Brasil potência.  
Já na década de 50 o Espírito Santo vinha num processo de desenvolvimento, baseado na cafeicultura, da pequena produção rural, mas que, com Jones dos Santos Neves, tem uma liderança tentando articular interesses para um projeto alternativo à cafeicultura, a industrialização. Em 1942, quando foi interventor, o Jones disse uma frase clássica: “Os galhos dos cafeeiros são frágeis demais para suportar a economia do Espírito Santo. O Espírito Santo precisa buscar outros caminhos, outras alternativas”.  
O que ele pensava é que o Espírito Santo poderia mesmo ficar na frente de Minas Gerais, com seus minérios, e criar um pólo siderúrgico e industrialização importantes. Quando ele assume o governo em 1950, tem essa mesma idéia, de sair da produção rural. E cria o Plano de Valorização Econômica do Estado do Espírito Santo, que tem essa vertente de incentivar e criar condições de gerar esse desenvolvimento industrial.  
Mas naquele momento ele não tinha uma coalização de governo capaz de dar sustentação a esse projeto, e ele empurra esse projeto de goela abaixo, pela via autoritária, e com isso vai criar uma série de atritos em sua base de apoio, que era o PTB, e no próprio PSD ao qual pertencia. E não vai conseguir fazer o sucessor. Ele está na vanguarda da idéia de desenvolvimento e a base social não tinha percebido a industrialização como alternativa, ainda está muito ruralista.  
O próximo governo é Chiquinho (Francisco Lacerda de Aguiar), que era ruralista. Depois, quem entra no governo em 1958 é Carlos Lindenberg, que também era ruralista, pertencente ao PSD, e durante dois anos, até 1960, vai ficar chorando sobre o leite derramado, de que o Chiquinho fez um descalabro, acabou com o Estado. Fica questionando o tempo inteiro.  
Em 1958 ocorre um fato importante: o Américo Buaiz, que já tinha criado a Federação do Comércio em 1954, cria a Findes (Federação das Indústrias do Espírito Santo), com apenas quatro indústrias. Mas o importante é que ele tinha uma visão igual à de Jones, de que o Estado precisava se industrializar. Traz uma equipe da Confederação Nacional das Indústrias (CNI) para tentar ajudar o Espírito Santo, mas cria o Conselho Técnico da Findes com gente daqui. E quem vai compô-lo é Arthur Carlos Gherardt dos Santos, Pietrângelo de Biase, Eliezer Batista, Carlos Lindenberg Filho e vários outros técnicos, pessoas que estavam chegando ao Espírito Santo naquele momento vindos de cursos de especialização nos Estados Unidos.  
Esse grupo faz o primeiro estudo fundado na ciência econômica sobre o Espírito Santo. Até então, não havia nenhum estudo científico que tenha feito um diagnóstico econômico-social do Estado. Esse estudo vai se chamar Plano de Desenvolvimento do Espírito Santo. O governo Carlos Lindenberg estava muito na linha de recuperar a cafeicultura em crise e se realinha com as novas idéias.  
Só que o Carlos Lindenberg deu azar, atropelado pela instabilidade política gerada pela renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961. Ele acaba não tendo recursos nem viabilidade política para viabilizar seus planos, que ficam na gaveta.  
Da mesma forma que ocorreu com o Jones dos Santos Neves em 1954, na sucessão do Carlos Lindenberg em 1962 de novo vai voltar o Chiquinho, porque o PSD tem pouca habilidade para articular com outros grupos políticos. Quebram-se acordos feitos em 1958.  
A imposição da candidatura Jones leva a um racha, em que Eurico Rezende da UDN e outros vão compor de novo uma ampla coligação, que garantia o Eurico e o Raul Giuberti para o Senado, com o Chiquinho para governador. E ganham a eleição.  
Esse projeto, então, fica a princípio na gaveta até o golpe de 1964, que vai depor no ano seguinte Chiquinho e entregar o governo a Cristiano Dias Lopes, que era do grupo de Lindenberg e era deputado estadual. Ele assume o governo e coloca nas posições-chave o grupo da Findes – o Arthur, o Pietrângelo, o Lélio Rodrigues. Esse é o grupo que pensa o governo do Cristiano, e faz uma reforma institucional e administrativa importante. Cria o Bandes, o Fundap, o DL-880 de incentivo fiscal, e todo um mecanismo que cria um aparato político-institucional para o que viria na década de 70.  
Quem entra depois do Cristiano é o Arthur, que tem uma visão diferente do Cristiano. Nesse grupo está o Eliezer Batista, e eles têm uma visão mais próxima e afinada com os militares na linha dos grandes projetos, nos moldes da Vale do Rio Doce. Essa coalização do governo Arthur Carlos vai pensar o Espírito Santo dentro da idéia de dar o famoso salto. Tinha ficado para trás e tinha que dar o salto para pegar o bonde andando lá na frente, mas não com as pernas que queria o Cristiano, com o pequeno capital, fazer crescer a indústria, surgir o empresariado local.  
Tinha que ser uma coisa mais arrojada, trazer o grande capital, o grande investimento. Como se está num momento de ditadura, no governo Médice, o mais duro dos militares, o Arthur consegue passar isso com todo o apoio da área federal, porque junta a intencionalidade local com o governo militar e com a Vale do Rio Doce, que, enquanto estatal forte, tem seus próprios interesses e logística.  
Nesse momento, havia abundância de ferro no mercado internacional, justo o principal produto da Vale, com a descoberta de jazidas na África do Sul e na Austrália. Só que tinha a qualidade do ferro, e o nosso era muito bom. Mas a Vale está longe dos mercados consumidores, o Japão, os Estados Unidos e a Europa.  
Tenho uma pesquisa a ser publicada, na qual descubro o que acontece na confluência da conjuntura dos anos 70 no Espírito Santo: o encontro da estratégia desenvolvimentista brasileira, do Brasil potência, com o movimento do Japão em busca de um desenvolvimentismo para competir com os Estados Unidos. Estão os japoneses fazendo investimentos fortes, mas não têm a matéria-prima. Precisam de ferro, mas onde vão comprá-lo?  
Tinham a alternativa da Austrália, da África do Sul e do Brasil. A Vale já tinha, estrategicamente, desde os anos 50, largado o mercado norte-americano e buscado outros mercados. Larga os Estados Unidos e isso vai até causar alguns problemas para o Itamarati, porque a Vale vai exatamente para a Polônia, do bloco soviético em plena época da guerra fria. Mas a Vale impõe isso.  
A partir de 1956-57, a Vale começa a estabelecer com o Japão a política de venda de minério de ferro a longo prazo. Contrata uma quantidade para entregar em 12 a 15 anos. Isso permite que a Vale planeje seus investimentos, seu crescimento econômico. Ela tinha começado isso antes dos anos 60, quando se caracterizou essa abundância de minério de ferro no mercado. Ela está numa encruzilhada.  
– O mentor dessa estratégia da Vale do Rio Doce foi o Eliezer Batista?  
– Sim, foi o Eliezer. A estratégia era convencer os japoneses de que poderia colocar o ferro lá ao mesmo preço dos australianos e dos sul-africanos, e com muito mais qualidade. Mas para isso o Japão tinha que concordar em estabelecer uma parceria com o Brasil, criando aqui um porto com capacidade para receber navios com mais de 100 mil toneladas, e tinha também que construir esse navio, porque na época os maiores eram de 60 mil toneladas. Isso para o ferro chegar lá mais barato.  
Seria uma revolução na indústria naval. E em 1961 a Vale, com a credibilidade que havia conseguido na década anterior, assina um contrato com os japoneses para construir um porto de Osaka e o Brasil construir Tubarão. E os japoneses pensarem um navio para levar minério e trazer óleo, porque não tínhamos auto-suficiência em petróleo. A estratégia do Eliezer era brilhante: levar o minério de ferro, voltar pela Arábia Saudita e trazer petróleo. E os japoneses embarcam nessa, porque sabiam que nosso ferro era bom.  
Esse contrato, feito antes de 1964, previa que o porto tinha que estar pronto em 1966. E a Vale vai, a partir daí, colocar ferro a preços competitivos no Japão e consegue triplicar sua produção, porque moderniza a linha de ferro, automatiza a Vitória-a-Minas, cria a Docenave porque vai dominar a cadeia produtiva desde a extração do ferro até colocar na boca da usina, no Japão.  
Está ocorrendo nesse momento uma mudança que a gente só vai perceber nos anos 80. A reestruturação produtiva das empresas, cada vez menores, distribuindo tarefas para outras empresas no entorno. Nisso, os Estados Unidos, que produziam a maior parte do aço do mundo em 1950, perde essa primazia para o Japão, que não tem ferro.  
– Os americanos devem adorar o Brasil e a Vale do Rio Doce por causa disso...  
– Não é à toa que forçaram a barra para privatizar e agora levaram-na, mas isso é outra história. Voltando ao nosso tema, o Japão desenvolve um novo tipo de tecnologia, de colocar a indústria não perto das minas, mas perto do porto, com a pelotização. É um outro tipo de lógica.  
É isso o que os japoneses estão fazendo em 1950 e 1960 e que vai acoplar o desenvolvimentismo brasileiro, que já começa com JK na década de 50 e que os militares aprofundam a partir de 1964. A diferença é que o JK faz isso com a democracia e os militares vão fazer com a ditadura.  
A Vale do Rio Doce vai crescer muito e isso vai ter um impacto alto no Espírito Santo. E onde estava o Eliezer Batista em 1960? Exatamente na superintendência da Vale do Rio Doce e articulando, através do Conselho Técnico da Findes, todo esse modelo desenvolvimentista onde a Vale é o carro-chefe. A logística de expansão da Vale é que é determinante principal dessa expansão, que tem alguns movimentos locais, mas tem seqüência quando chega ao governo o Arthur Carlos.  
Quem faz o movimento é o governo brasileiro, assinando em 1961 o contrato com os japoneses e entregando o porto de Tubarão em 1966. Mas o Cristiano Dias Lopes não havia percebido esse movimento e, em 1968, quando quer aprovar o DL-880, faz um discurso dizendo que a Vale do Rio Doce é uma grande estatal que passa pelo Espírito Santo e que aqui só deixa o apito do trem e o pó do minério.  
Quem está percebendo essa movimentação é o Arthur Carlos, que já era um economista de ponta e o Cristiano era uma liderança que mal tinha uma graduação, e que não tinha um conhecimento mais refinado do movimento da economia. Quem tem isso é o Arthur Carlos, o Eliezer e outros técnicos, que dominam essas informações.  
Então, o Arthur, ao chegar ao governo, e eu pesquisei isso nos jornais da época, vai passar a maior parte de seu tempo viajando pela Europa e Estados Unidos. O Arthur vai ao Japão, Itália e Alemanha. Ele negocia as siderúrgicas que vêm para cá. A pelotização da Vale, da Samarco, e algumas coisas que não vão dar certo, como o estaleiro naval.  
A Vale, além da estratégia na área do ferro, percebe que tinha que se libertar do produto único, porque, se ficasse apenas com o ferro, poderia ter problema. Precisava de uma expansão horizontal e vai pegar uma conjuntura favorável, a crise da cafeicultura, que começa em 1955, e a política do JK para resolver o problema é exatamente a erradicação dos cafezais improdutivos. Ela começa exatamente em 1960 e o grosso vai se dar entre 1966 e 68.  
Essa erradicação, que era para todos os Estados, vai atingir muito mais o Espírito Santo do que o próprio Rio de Janeiro e Minas Gerais. Primeiro, porque o café até 60 era a base da economia capixaba. Rio e São Paulo já tinham outra alternativa, aqui não. E o Espírito Santo era quem tinha o pior café, o tipo 7. O dinheiro da erradicação vai mover o Bandes e o financiamento dos pequenos investimentos, mas vai gerar também o esvaziamento do campo, mais de 250 mil famílias que migram.  
Na verdade, esse esvaziamento do campo vai fazer com que essa terra se torne disponível e, na segunda fase, vai se transformar em florestas de eucalipto. A Vale do Rio Doce planta eucalipto aqui, em todo o Vale do Rio Doce, Minas, sul da Bahia. Porque havia o incentivo fiscal para o reflorestamento, a Vale vai reflorestar com o eucalipto porque ela já tinha feito estudos para isso.  
No plano do Estado, na Findes havia a produção de um saber que gera algum tipo de política. Quem está produzindo esse saber e essa logística são os tecnocratas das empresas estatais. E a Vale traz os melhores técnicos, formados na Alemanha, Japão e Estados Unidos, e forma seu staff de planejamento, antenado para as mudanças de ponta que estão ocorrendo no mundo. Não é à toa que a Vale vai se transformar num conglomerado de 52 empresas. Ela investe pesadamente em pesquisas. É uma das empresas que mais investem em pesquisa, tanto no minério, quanto na logística e na tendência do mercado.  
Ela vai, naquela época, fazer um estudo na Austrália sobre o eucalipto e traz isso para cá, para o Brasil e o Espírito Santo. Ela já sabia que o eucalipto era uma área de ponta e ela acompanha isso.  
Claro que ela estando aqui no Espírito Santo, tendo que aplicar 8% de seu lucro líquido no seu Fundo Social, e tendo que investir todo o seu lucro, porque era estatal, isso faz com que ela modernize e invista muito nessa região do vale do Rio Doce para gerar cargas e mercadorias para essa linha de transportes que ela moderniza. Um desses investimentos é esse de reflorestamento, criando a Flonibra, depois a Aracruz Celulose, que depois vende.  
O Arthur negocia todos os projetos, mas quem implementa é o Elcio Alvares, que vai criar toda uma infra-estrutura, e quem termina de implementar é o Eurico Rezende. E já estamos na fase de distensão em 1979 e a última coisa que o Eurico vai fazer é o famoso projeto Cidades de Porte Médio, financiado pelo Banco Mundial, tentando apagar o incêndio de toda a revolução que acontece aqui.  
Nos anos 60, com a erradicação dos cafezais, temos uma migração campo-cidade, todo um adensamento que vem para Vitória com a propaganda de que vai ter emprego. Com o milagre econômico e os grandes projetos dos anos 70, aqui era o único Estado que estava crescendo e começa a migração de outros estados, que faz com que essa população, que era pequena, cresça em projeções geométricas, a taxas de 6% ao ano. Em menos de 30 anos, a população da Grande Vitória salta de 200 mil pessoas para 1,5 milhão.  
Isso traz uma série de problemas: habitação, saneamento, transportes. Em meados dos anos 70, era um caos, com uma única ponte, com um trem que passava ali no meio todo dia até 1979, às 7 horas da manhã, e parava tudo. O Eurico vai apagar esse incêndio com o projeto que cria todo o esquema do Transcol, a infra-estrutura urbana.  
– O Transcol foi implantado pelo Albuino Azeredo 12 anos depois.  
– Mas todos os estudos foram feitos nos tempos do Eurico, lá no Instituto Jones.  
– Igual à construção de Brasília com JK, um projeto de 40 anos que foi executado por ele, que ficou conhecido por construir a cidade?  
– Pois é. Aqui esses estudos foram produzidos e cheguei a trabalhar nesses projetos no Instituto Jones. Aqui se tem uma seqüência de projetos e não se tem, na verdade, como condutores desses projetos as elites locais. A não ser o Cristiano, o Arthur, Elcio e Eurico estão implementando o que vem de fora. O Arthur, por exemplo, expressa o capital estatal. Uma sintonia com o grupo Vale do Rio Doce, dos grandes projetos.  
– Tanto é que, depois que sai do governo, ela vai presidir a Companhia Siderúrgica de Tubarão, que estava se implantando dentro dessa idéia.  
– Pois é, uma grande sintonia. E claro que os governos subseqüentes não dão para voltar atrás, dão seqüência, porque é um projeto que continua no governo militar. A indicação do Elcio foi um imbróglio total.  
– Nós estamos falando de quatro governos da ditadura, indicados pelos generais-presidentes, e logo depois vem um governo eleito pelo voto direto, o Gerson Camata. O que muda nessa dinâmica interna da relação do econômico com o político?  
– Muda da água para o vinho. Piora para alguns, melhora para outros, depende do ponto de vista.  
– Nessa história toda em nenhum momento eu vejo a senhora falar em Assembléia Legislativa. Não existe nada de participação do parlamento?  
– No Jones, tem a Assembléia. Ele perde as eleições dentro desse jogo. Mas nossa democracia se fez de cima para baixo. A partir de 30 até 1945 se tem uma ditadura, que mantém as coisas tão longe quanto podem ficar. Em 45 se tem uma abertura política, temos essa sociedade muito tradicional, e aquelas oligarquias que temos antes de 30 transitam para cá e mantêm esse coronelismo. Os partidos são criados de cima para baixo.  
Quem criou o PSD foi o Jones dos Santos Neves, que convoca todos os prefeitos e lideranças da época, faz uma grande reunião e cria o partido. E entram aqui todos os amigos e inimigos do Getúlio Vargas. Depois, uma parte racha e vai criar a UDN. Outra parte, do próprio Getúlio, cria o PTB. E uma parte do PSD que racha depois forma o PSP. E são as oligarquias da elite.  
– Quem são esses líderes?  
– No PSD o Jones dos Santos Neves, na UDN o Eurico Rezende, no PTB a liderança inicial era o Floriano Rubim, mas no início da década de 50 vai ser o irmão do Jones, o Jaime Santos Neves junto com o Américo Buaiz e, junto com o Américo, Saturnino Mauro, pai do Max Mauro, um ferroviário, pelego, que forma o PTB do Getúlio. O PSP, que era do Chiquinho, era o grupo dos militares, Joaquim Leite de Almeida e o Carlito de Medeiros, pai do Rogério Medeiros, o Cupertino de Almeida. Militares dissidentes do PSD. Foi nessa que eles lançaram a candidatura do Chiquinho em 1954.  
Na verdade, é uma história das elites oligárquicas, que querem manter o poder e não ceder espaço, a exemplo do que acontece em todo o país.  
– Mas volta a normalidade democrática a partir de 1982. E a partir de que momento a senhora vê o surgimento dessa deterioração nas relações entre o Executivo e o Legislativo?  
– Nesse interregno da ditadura temos uma Assembléia sem prerrogativas. Cria-se um Executivo forte, tanto federal quanto estadual. As questões públicas não são colocadas para os partidos nem para ninguém. Não se discutiu para instalar a CST. É o cumpra-se e ponto final. Ninguém discutiu o efeito do pó de minério na cabeça de todo mundo. Não se construíram lideranças que pudessem estar questionando.  
De outro lado, na base social, surge uma liderança de contestação dos movimentos populares e que agora chega ao poder e não está habituada a pensar, planejar e colocar propostas políticas. Ela é muito contestadora por toda a repressão que sofreu e toda a forma desse movimento. É uma liderança contra o Estado. Agora, depois dos últimos governos mais democráticos, é que começam a se enxergar. Elas se formam em partidos como o PT, o PSB, PPS, um pouco do PSDB. Esse grupo, que pode se chamar do movimento popular democrático, tem a prática da contestação e do questionamento, mas não a prática e a vivência dentro do aparelho do Estado.  
Do outro lado, têm-se os partidos que historicamente tiveram a prática do exercício do poder dentro do aparelho do Estado, o PFL, parte do PMDB, do PSDB. Isso é um descompasso.  
Em 1982 temos o retorno à democracia e essas lideranças da ditadura saem de cena e todas as instituições que essas lideranças criaram, principalmente o esquema do pensar e planejar, vão ser desmontadas, porque é contra isso muito que se questiona aquele estado ditatorial, a imposição de cima para baixo. Só que não tinha construído uma forma alternativa de como fazer isso de outro jeito. Fica meio anárquico e, pior do que isso, esses governadores que chegam na década de 80 são as mesmas pessoas que estavam lá, antes de 64, e que ficaram fora do poder.  
Quem é Gerson Camata? Já era uma liderança da Arena, na verdade já era uma liderança emergente no PSD. Chega também Max Mauro, filho de Saturnino Mauro. Principalmente Camata e Max eram daquele mesmo tipo de líder que não saiu do Espírito Santo, e que não foi para os bancos da universidade, e que não conhecem a importância de um planejamento, de um Estado agir numa economia moderna. Não estou dizendo que todo mundo tem que fazer universidade, mas tem que estar antenado com isso.  
Tomar decisão numa economia moderna, industrializada, é diferente de tomar decisão numa economia primária exportadora, de baixa magnitude, que era o Espírito Santo dos anos 60. A cafeicultura tem problema sim, mas de natureza. E a forma como se governou até 64, com exceção de Jones, era a forma de se colocar no governo os amigos com suas experiências, empresários, mas não a experiência de pensar o todo.  
Para se pensar política econômica, é preciso ter diagnóstico e saber como e onde intervir. Para que se criou o Ipea? O Bandes? Uma série de instituições de conhecimento? A Vale tem condições de avançar porque estuda. É diferente de se colocar aqui uma pessoa que não tenha a dimensão do significado dessas transformações. E ele vai agir nisso virado para a frente, mas olhando pelo retrovisor, e vai bater com a cabeça no poste. Ele tem como referência sua historicidade anterior, não se preparou e nem se aprimorou para enfrentar as mudanças na velocidade em que estão ocorrendo nos anos de 80 e 90. Governam como se estivessem nos anos 60.  
O Camata chega e acaba com o Instituto Jones. Ele acaba com uma célula, o embrião de uma instituição que estava gestando conhecimentos mais refinados como base para processos decisórios. Para gerenciar uma sociedade moderna, precisa de informações refinadas de como tomar decisões. Qualquer empresário precisa de informação, que é a matéria-prima da sociedade moderna. O grande fator de atratividade de capital hoje é ter logística de transporte, mão-de-obra qualificada e acesso à informação. Diferente dos anos 40, quando o estratégico era matéria-prima.  
Enquanto se tem todo um movimento mundial da reestruturação produtiva, da globalização que se consolida nos anos 90, assumem aqui no Estado governadores com pequena visão dessa dimensão. Não percebem, não estão sintonizados com isso. O Camata vai governar o Espírito Santo como se estivesse nos anos 60. Seu eixo é recuperar a cafeicultura e levar energia elétrica. As estradas que faz são para escoar o café.  
– É ali que ele vai construir a base eleitoral que vai sustentá-lo até hoje.  
– Sim, até hoje. É claro que o meio rural tinha que ter uma atenção, mas ele não poderia ficar só nisso. Ele perde o bonde da história, porque concentra sua visão nos anos 60, mas tinha que saber que não estava governando um Estado que tinha só o café, mas tinha a CST, a Aracruz, um processo de urbanização em curso, e tinha que manter órgãos que pudessem criar uma inteligência. Pelo contrário, ele desmantela seu único órgão e governa como se estivesse nos anos 60.  
Ele compromete os futuros governos. O Max Mauro, que vem na seqüência, governa com a mesma mentalidade, só que enquanto o Camata volta seu trabalho para o interior, o Max, cujas raízes são urbanas, vai direcionar seu trabalho para isso, principalmente Vila Velha, de onde ele é. Mas não consegue perceber que está em outro diapasão, numa fase de reforma constitucional, uma série de coisas acontecendo, e ele fica naquela briguinha paroquial, pequena. E não se dá conta do grande movimento e as transformações que estão acontecendo.  
O Albuino chega na seqüência, com o discurso de gerente, pensei até que teria essa capacidade de visão, porque vinha da Vale, mas não investe nisso.  
– Onde foi que ele errou?  
– Ele herdou o vício dos outros, continuou olhando pelo retrovisor, não tinha estrutura partidária e nem história política. Chega com aquele discurso do He-Man, do pobrezinho que sobreviveu e agora vai salvar o mundo. Ele não tem a visão do estadista para perceber que está numa economia hipercomplexa e precisa de alguém com capacidade de visão de futuro. Ele rachou com o Max, ficou o tempo inteiro naquela briga, e se articulando com os prefeitos. Ele não faz a ponte, a articulação entre o segmento da economia conservadora e tradicional com esse setor que se moderniza. Faltou a visão estratégica. Continuou olhando para trás.  
E a Assembléia, tanto no Camata quanto no Max e no Albuino, continua pior ainda, olhando para trás, para sua igrejinha, cada um que fazer sua racionalidade pequena, e não percebe que está passando elefante voando.  
– Vem o Vitor...  
– Uma nova esperança de mudança, mas que não se articula e acaba cooptado pelas antigas forças. O próprio PT falhou ali. Para mim, atribuo a todos eles a falta da produção do conhecimento, de uma inteligência que pudesse de alguma forma estar assessorando e informando. A não ser eu e umas quatro pessoas, não conheço mais ninguém estudando o Espírito Santo. E nunca fui procurada para dar uma assessoria, para dizer que há outras coisas acontecendo. Fica muito nesse perder-se no pequeno, quando o grande está rolando.  
– A senhora diz que os anos 90 são férteis nessa deterioração das relações da Assembléia com o Executivo. Como isso foi sendo gestado?  
– Não é que ela se deteriora nesses anos, ela já vinha se deteriorando e a Assembléia não expressa esse novo. Continua voltada lá para o meio rural, sem pensar o Espírito Santo como um todo. E o voto no meio urbano é disperso e não se elegem lideranças do meio urbano, que poderiam gerar novas representações mais sintonizadas. E o mais grave: não temos uma participação mais efetiva dos segmentos empresariais na política. Não temos aqui, como em São Paulo, um Oded Grajew, o Ciro Gomes e o Jereissati no Ceará, vários empresários que entram na política no Rio de Janeiro, e que fazem da política um espaço da negociação e da articulação.  
Como no geral, os empresários locais negociam nos planos nacional e internacional, não investem muito na entrada na política nem criam organizações empresariais fortes. Nossa Findes, por exemplo, tem o que há de mais retrógrado. Pega a Fiesp e encontra grandes empresários, assim como no Rio, no Rio Grande do Sul, em Minas. Todas elas têm grandes empresários, menos aqui.  
Acho que aqui é o grande buraco. O fato de não ter esses setores, que dão dinâmica à economia, com participação política, não constrói representações que vão trabalhar seus interesses a partir da Assembléia. Então, se gera uma Assembléia que representa esses setores mais marginalizados, e não se tem uma direção no governo do Estado, se tem um poder que não se define e nem se opõe.  
O desenvolvimento do Espírito Santo segue o tom dos grandes projetos, enquanto na Assembléia se discute o privado, como vai atender com benesses a determinados setores privados. Em vez de discutir interesses públicos, discute-se a forma de distribuir interesses para segmentos privados, seja dessas clientelas do interior, seja para as clientelas urbanas.  
É esse vácuo de poder que abre espaço para articulações de interesses estranhos aos interesses hegemônicos da sociedade, e que dão o tom e interferem na ação coletiva daqueles deputados. Interesses fora da normalidade da sociedade, como o crime organizado e outros interesses predatórios, se apropriam daquele espaço. A partir do governo do Albuino, o Executivo fica refém do Legislativo, o que explode de vez no governo do José Ignácio.  
– A senhora fala de uma nova base urbana e moderna se elegendo para a Assembléia e os dez primeiros dias dessa nova composição foram os mais conturbados da história do parlamento. A renovação mudou alguma coisa?  
– Acho que é complicado indicar uma tendência do que vai acontecer. Tem-se uma primeira eleição, que de alguma forma manipula e articula para manter o continuísmo. Todo o espaço de poder que estava vazio nos anos 90 foi ocupado por um segmento, que estendeu seus tentáculos e quer se manter. Esse poder se articula para se manter. E tem experiência nisso. Precisava dos novos para se manter e consegue nesse primeiro round uma eleição favorável, mas foi anulada porque contestada.  
E claro que, para ser anulada, teve uma participação importante do Ministério Público, com as denúncias e o apoio da força-tarefa, o que de alguma forma mostra o descalabro dessas negociações escusas e inadmissíveis numa democracia.  
– De negociações escusas, a senhora chama as movimentações políticas do grupo antigo?  
– Pelo que se veiculou na imprensa, as fitas gravadas, os levantamentos feitos, tudo mostrou e trouxe à tona todas as formas negativas que se processaram na Assembléia sob esse comando, pagamentos de pedágios, propinas.  
Esses elementos, o processo da eleição, criaram as circunstâncias para anular a eleição da Mesa e para a cassação de vários deputados, que seriam desse tal grupo dos conservadores.  
Vão guiar todo um trabalho do governador eleito, de sua base de sustentação, do Ministério Público e do governo federal para desmontar essa eleição e eleger nova Mesa Diretora, e esses deputados que elegeram o Geovani Silva mudam e votam no Cláudio Vereza.  
– O que a senhora acha que funcionou mais no segundo round, a pressão dos dirigentes partidários ou o desgaste público dos deputados?  
– A forma como a sociedade reagiu foi tão precisa que eles se viram acuados. Os deputados eleitos pelo voto religioso, por exemplo, são duramente questionados em suas comunidades. Todo mundo comentava isso, até minha empregada. Não é uma coisa só nossa, dos formadores de opinião. Eles ficaram constrangidos.  
– O esquema só foi desmantelado a partir de uma ação da Justiça. Usando um pouco de maquiavelismo, os fins justificam os meios? Ou seja, é legítimo se recorrer a esse tipo de recurso numa disputa política interna de um poder?  
– É claro que é legítimo, porque a democracia cria a divisão de poderes como peso e contra-peso, para que nenhum poder se sobreponha ao outro. E para que tenha um relativo equilíbrio e garanta a responsabilização dos governantes e dos representantes. O Ministério da Justiça e o Ministério Público são guardiões da funcionalidade democrática, e têm que intervir quando isso está ameaçado.  
– Isso não caracteriza a intromissão de um poder sobre o outro?  
– Não, porque estava claro, por todas as evidências, que há problemas. Não é para isso que se elege deputado. Há várias provas contundentes. A Assembléia Legislativa não tem que asfaltar ruas, não tem que negociar com empresas diretamente para asfaltar rua em Cobilândia.  
– Mesmo que isso seja objeto de uma lei aprovada pela Assembléia?  
– O Legislativo está fazendo coisas que não são de sua prerrogativa, que é formular leis, ampliar o debate público e garantir o controle do Executivo. Não é seu papel conceder incentivos fiscais, construir casas, fazer ruas. A política econômica é do governo. As funções são bem claras. Esse pessoal foi cassado justamente porque entraram numa área que não era deles. Isso é inconstitucional.  
O estado democrático de direito garante uma série de regras e ordens que devem ser cumpridas para garantir a estabilidade democrática, senão estará rasgando a Constituição, jogando as regras da racionalidade democrática na lata de lixo e voltando ao estado feudal, sem a legitimidade da lei como âncora máxima da garantia de justiça e de liberdade.  
A Constituição define papéis, competência e prerrogativas de cada poder. Um dos papéis do Legislativo é controlar o Executivo. E o papel do Judiciário é controlar os dois, garantir que as leis sejam cumpridas e respeitadas tanto pelo Legislativo quanto pelo Executivo, e não fazendo o que vem na sua cabeça. O atropelo disso abre brechas para uma série de irregularidades, ameaça as instituições.  
Se o Ministério Público não intervém, abre espaço para um estado paralelo e vai se acabar na história do Hobbes, a guerra de todos contra todos. É preciso garantir as condições de governabilidade.  
– Uma das coisas denunciadas naquele período, pelo deputado Sérgio Borges em sua posse, foi de que o secretário de Segurança foi com uma equipe ao hotel onde os deputados estavam reunidos, dentro da articulação política que faziam, com o objetivo de intimidá-los. Como a senhora avalia esse caso? É também legítimo?  
– Aí é complicado, extrapola. Estar num hotel é dentro do direito de ir e vir, não é crime. Acho que extrapola suas atribuições, a menos que houvesse uma denúncia de ameaça à segurança pública, ao governador, ou algum tipo de complô fora da lei. O fato de estarem lá não faz nenhum sentido ao comparecimento de um aparelho de segurança do Executivo.  
– A senhora acha que esse rompimento havido agora é definitivo? Isto é, esse isolamento do grupo político que antes detinha o poder na Assembléia?  
– Acho que vai depender muito de como é que o governador e sua base vão conseguir negociar e articular o espaço que têm. Vai depender de como esse grupo, agora derrotado, vai se rearticular. É meio perigoso pensar que o grupo tenha sido eliminado. Acho até que vai demorar um pouco mais para se chegar a uma estabilidade, porque este foi um episódio que tende a se repetir com outro tipo de tensão daqui para a frente.  
– A tensão continua?  
– Não vai ser fácil para o Paulo Hartung governar, até porque ele não tem um partido que lhe dê uma sustentação forte. Vai governar com um PT que não faz muito bem o seu jogo. Um PPS, um PSB, que estão mais próximos, mas que têm divergências clássicas. Acho que o Hartung tende a ter um problema como teve o Jones na década de 50.  
O Hartung é muito discípulo de Jones e JK, tem essas referências, do estadista, mas tem pouca habilidade política. O Lula, ao contrário do Paulo Hartung, embora tenha idéia de construir o novo, tem habilidade política para abrir espaço e saber perder no curto prazo para ganhar no médio e longo prazos. Acho que o Hartung está mais para Jones do que para Lula.  
– Isso significa que a senhora está mais otimista com Lula do que com Hartung?  
– Não necessariamente. Apenas acho que o Lula tem mais habilidade e mais jogo de cintura do que o Paulo, mas acho que o Lula também vai penar muito porque a conjuntura internacional piorou muito, e o pacto nacional é muito difícil, complicado. Mas ele tem mais habilidade.  
O Hartung tem muito boas intenções, uma leitura muito boa dos processos econômicos, dos processos históricos do Espírito Santo, melhor do que o José Ignácio, e está mais inserido dentro do significado disso, em que isso implica. Sua dificuldade vai ser na negociação, articulação e desmobilização dessas pessoas que se apropriaram do poder.  
– A senhora fala isso com muita autoridade porque, como estudante, foi contemporânea do Paulo Hartung quando ele era presidente do Diretório Central dos Estudantes da Ufes e acompanhou sua trajetória.  
– Exato, conheço. Ele não é um sujeito partidário, e tem poucos quadros para ajudá-lo nessa construção. Tem bons tecnocratas, mas não tem quadros políticos. Ele não tem um José Dirceu (chefe da Casa Civil de Lula) e isso faz uma grande diferença. O José Dirceu viveu muitos conflitos e processou bem isso. O Hartung já não tem a mesma habilidade e vai penar um pouco  
 
 

  

Copyright © 2001, Vida Brasil. - Todos os direitos reservados.