Vidabrasil circula em Salvador, Espírito Santo, Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo Edição Nº: 327
Data:
15/4/2003
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Dossiê

Matou ou não matou?  
 
Uma nova biografia não autorizada do Rei Juan Carlos de Espanha relembra a morte trágica do irmão mais novo de monarca, no Estoril  
O príncipe herdeiro Juan Carlos e o seu irmão mais novo, Alfonso, brincavam sozinhos num dos quartos da Vila Giralda quando se ouviu um estrondo. O som inconfundível de um tiro ecoou pelo casarão do Estoril, residência da família real espanhola exilada em Portugal. Alfonso, de 15 anos, caiu fulminado, sangrando abundantemente na cabeça. Morreu poucos minutos depois.  
O trágico episódio aconteceu em 29 de março de 1956 e é recordado na biografia não autorizada do rei Juan Carlos, da autoria do historiador inglês Paul Preston, lançada na Espanha no dia 27 de março. Em Don Juan Carlos. El Rey de um Pueblo (D. Juan Carlos. O rei de um povo), Preston lembra um assunto tabu na corte espanhola e afirma que foi Juan Carlos quem, acidentalmente, disparou a arma que matou o irmão. O autor, o mais prestigiado especialista em história contemporânea da Espanha (ver: "O Hispanista"), evoca o testemunho de um dos melhores amigos de Juan Carlos na época: "Parece que o próprio Don Juan Carlos confessou a um amigo português, Bernardo Arnoso, que tinha apertado o gatilho sem saber que a arma estava carregada. Ela disparou e a bala fez ricochete numa parede e atingiu Alfonsito no rosto."  
O amigo citado, Bernardo Arnoso, desmentiu que alguma vez o rei lhe tenha feito aquela confissão: "Isso é completamente falso. Ele nunca me disse que tinha apertado o gatilho. Ninguém sabe ao certo o que se passou naquele dia."  
Não é a primeira vez que o rei é apontado como o autor do disparo fatal. O jornalista espanhol José António Gurriarán publicou, no ano 2000, o livro Um Rei no Estoril, que relata a vida da família real espanhola em Portugal. Gurriarán ouviu o português Antonio Eraso, um dos melhores amigos do infante Alfonsito (diminutivo pelo qual era tratado Alfonso no Estoril), e escreveu: "Nem Antonio Eraso nem a maioria dos amigos do Estoril e de Cascais de D. Juanito e D. Alfonsito tem dúvidas de que o acidente que causou a morte do infante aconteceu quando os dois irmãos brincavam com uma pistola que D. Juan Carlos tinha na mão."  
Versões — A notícia correu depressa. A Embaixada da Espanha em Lisboa apressou-se a divulgar a versão oficial do acidente, dizendo que D. Alfonso estava limpando a arma quando esta disparou. Segundo José Gurriarán foi o próprio generalíssimo Franco, o ditador que governava a Espanha, quem decidiu poupar o príncipe herdeiro e "oficializar" que tinha sido Alfonso o responsável pela sua própria morte. Os jornais portugueses e espanhóis do dia seguinte confirmaram a versão da Embaixada. Na família real espanhola, o assunto tornou-se tabu.  
A morte de Alfonso foi o acontecimento mais triste da vida de Juan Carlos. "Ainda hoje ele sofre muito com esse desastre", diz Eduardo Guedes de Queiroz, amigo de infância do rei. Até aí, as longas temporadas que D. Juanito passava no Estoril eram sinais de férias e descontração. A família real chegou a Portugal em 1946, depois de uma curta estada na Suíça. O pai do atual rei da Espanha, D. Juan de Bórbon, chegou ao Estoril acompanhado da mulher, Maria de las Mercedes, e dos quatro filhos: Pilar, a mais velha, Juan Carlos, Alfonso e Margarida. D. Juan era filho de Afonso XIII, o último rei de Espanha antes de ser proclamado a II República, em 1931. era o pretendente a um trono que deixara de existir e desprezava o autoritarismo do regime de Francisco Franco. O ditador retribuía-lhe a desconsideração não permitindo que D. Juan regressasse ao país.  
O exílio no Estoril revelou-se uma época dourada para os filhos de D. Juan Carlos, o segundo na linha de sucessão, foram tempos felizes de brincadeiras com os muitos amigos que por ali fez. Bernardo Arnoso conheceu-o poucas semanas depois da chegada e recorda-o como uma pessoa extrovertida. "Era um tipo esplêndido, afável, divertidíssimo. Não fazia qualquer diferença dos amigos com quem se dava." Eduardo Guedes de Queiroz concorda e lembra-o como um grande desportista: "Montava a cavalo na herdade do meu pai e mais tarde fez-se um aficcionado na vela". Apesar da informalidade, os amigos portugueses tinham plena consciência de quem era aquela criança. "Tínhamos muito respeito por ele e tratávamo-lo por senhor Dom Juanito", recorda Bernardo Arnoso.  
Adolescente triste — O livro de Paul Preston mostra o outro lado de Juan Carlos. O historiador conta como, desde cedo, o príncipe teve de aprender a comportar-se tal qual um monarca. Seguiu a carreira militar e aprendeu os segredos dos três ramos das Forças Armadas - Exército, Força Aérea e Marinha. Apesar da desconfiança mútua, Franco e D. Juan de Bórbon acordaram que Juan Carlos devia ser educado na Espanha para um dia ser rei. Paul Preston retrata um adolescente triste, devido à separação da família e à rigidez das academias militares. Diz mesmo que Juan Carlos considerava o pai demasiado duro e pouco afetuoso. Ao contrário, Franco tomou-o como filho que nunca teve e acarinhou-o, ao ponto de se criar uma nítida tensão entre o príncipe e o pai.  
Bernardo Arnoso também desmente esta versão: "D. Juan sempre foi um bom pai. Nunca lhe vi qualquer aspecto de agressividade."Eduardo Guedes de Queiroz admite que D. Juan era um homem duro mas compreensivo: "Tinha um estilo muito militar, de grande dureza. Não achava muita graça que D. Juanito saísse conosco à noite para lá das três da manhã, mas nunca o castigava."  
Sobre as relações do príncipe com Franco, Queiroz admite existir desconforto. "Havia coisas de que eles evitavam falar. O general Franco chegou a tratar Juan Carlos como se fosse seu filho e D. Juan nem podia ouvir falar nele."  
Tensões — Para o historiador inglês, a morte do príncipe Alfonso agudizou a tensão entre pai e filho: "Incapaz de suportar a presença do seu filho, D. Juan ordenou-lhe que voltasse à academia militar(...). O incidente afetou de sobre maneira o príncipe e acentuou a sua tendência para a instrospecção".  
Segundo Preston, Juan Carlos, então com 19 anos, encontrou refúgio na companhia de mulheres. A sua eleita da altura era Gabriela de Sabóia, filha do exilado em Cascais. Bernardo Arnoso lembram que os dois tinham "uma amizade muito especial", mas a relação não vingou.  
Em 1962, o herdeiro do trono espanhol casou-se com Sofia da Grécia. Tinha 24 anos e uma carreira militar em plena ascenção. Paul Preston lembra que o casamento provocou mais um embaraço para D. Juan de Bórbon - cumprira serviço militar na Marinha e não gostou de ver o filho no casamento com o uniforme do Exército, conforme a preferência de Franco.  
A grande discussão, no entanto, deu-se em 1969, quando o ditador nomeou Juan Carlos Príncipe de Espanha e seu sucessor. Para D. Juan de Bórbon, o legítimo herdeiro da coroa, tal significava que jamais voltaria a sentar-se no trono e lembrou ao filho que se reservava o direito de revogar a decisão de Franco. Preston cita a resposta de Juan Carlos: "Que tenhas em atenção que isso significa a impossibilidade de recuperar o trono para a nossa família. Eu não serei rei, mas tu muito menos".  
A coroação — O grande dia chegou em 30 de outubro de 1975. com Franco agonizante, Juan Carlos assume a chefia do Estado e restabelece a monarquia constitucional. Os republicanos e os esquerdistas auguravam-lhe o título de "Juan, o Breve" e não acreditavam que ele pudesse democratizar o País.  
O rei surpreendeu toda a gente. Pôs em marcha a reforma do regime e viu o povo aprovar em referendo, de forma esmagadora (94 por cento dos votos), o estabelecimento de uma monarquia democrática na Espanha. Para os amigos portugueses, a conduta do rei não foi surpresa: "Ele continua a ser a mesma pessoa que nós conhecemos aos oito anos no Estoril", diz Bernardo Arnoso.  
Orgulhoso do filho, D. Juan abdicou definitivamente das suas aspirações da coroa em 1977. Os condes de Barcelona continuavam a viver no Estoril até 1982, altura em que finalmente regressaram à Espanha. Dez anos mais tarde, os restos mortais do infante Alfonso foram transladados do Estoril para Madrid. Mas a memória do pequeno Alfonso ficou. D. Juan morreu em 01 de abril de 1993. Portugal declarou um dia de luto nacional e Mário Soares foi o único presidente da República a assistir às cerimônias fúnebres. A amizade de Juan Carlos por Portugal nunca desapareceu e os amigos continuam a manter contato com ele, dos dois lados da fronteira  
 

  
Rei Juan Carlos

Vila Giralda - A família real espanhola viveu durante décadas nesta casa, situada no Estoril. Foi num dos quartos que se deu o acidente que tirou a vida do infante D. Alfonso.A família real espanhola chegou ao Estoril em 1946. Na foto da página direita, podemos ver D. Juan e D. Maria de las Mercedes com os filhos; Pilar (de pé, à esquerda), Juan Carlos (ao centro), Alfonso e Margarida.







Tragédia - Os jornais da época confirmaram a versão oficial - Alfonso disparou o tiro fatídico. Juan Carlos tinha uma grande amizade pelo irmão mais novo e ficou destroçado com a sua morte.





D. Juan, Pai do rei Juan Carlos, viveu no Estoril até 1982. Mário Soares condecorou-o e foi o único presidente da República a ir ao seu funeral, em 1993.



"O rei Juan Carlos nunca me disse que tinha apertado o gatilho. Ninguém sabe o que aconteceu". Bernardo Arnoso (Amigo de Juan Carlos)

Herdeiro - Franco nomeia Juan Carlos seu sucessor como chefe do Estado Espanhol

Esportista, Juan Carlos (ao centro), com Eduardo Queiroz (à direita) e amigos no Clube Naval de Cascais

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