Uma questão de mulheres

domingo, 3 de abril de 2011

Quase 40 anos depois do “manifesto das 343”, o aborto volta a ser discutido na sociedade francesa. É livre, mas a liberdade é aparência denunciada em “Consultórios de Deus”. Claire Simon ainda não tinha 20 anos quando a questão da interrupção voluntária da gravidez se impôs na sociedade francesa, nos anos 70.

Uma questão de mulheres





Ficou famoso o “Manifesto das 343”, lançado por Simone de Beauvoir,em 05 de Abril de 1971, no “Le Nouvel Observateur” e assinado por outras tantas mulheres, figuras públicas que ousaram vir para as praças afirmar “Eu abortei”. A essa altura, a ala conservadora chamou-lhes de prostitutas. A lei do aborto passou depois na França. Assunto encerrado?

“O problema”, diz Claire Simon, “é que o aborto na França,resolvido democraticamente, deixou de ser um combate há 40 anos. A questão está toda aqui. E a sociedade mudou entretanto.” Há sete anos, a cineasta é contatada pelos gabinetes de apoio ao planejamento familiar de Grenoble para realizar uma série de filmes pedagógicos sobre a situação atual. Espectadores-alvo? Jovens do ensino secundário. O que agora se passa, de resto, é desastroso, sobretudo no que toca à vida das mulheres da comunidade muçulmana. Claire Simon não consegue fazer esses filmes. “Numa semana assisti a uma realidade arrepiante: essa realidade era um filme, não podia ficcioná-la. As muçulmanas de hoje têm de negociar a sua liberdade de outra forma. E para chegar à liberdade há sempre muitos caminhos. Como o caso da garota do filme, que esconde a plaqueta de pílulas na caixa do correio da casa dos pais. A mãe não sabe nada. Se descobrir, a menina vai ter problemas. Provavelmente, vai levar pancada. Em casos extremos, é expulsa de casa.”

Simon vai mais longe: “Na França, a discussão já não é o aborto. Na sociedade francesa, debate-se se as mulheres árabes devem ou não usar o véu islâmico. Como se o tema do aborto, que é muito mais profundo e fraturante, já estivesse ganho. Não está. Lembro-me que, quando fiz o casting com a primeira moça argelina, falei disso com ela. E perguntei-lhe: ‘Achas que és mais livre do que a tua mãe?’ Ela responde-me que sim, sem dúvida. ‘ Achas que durante a Guerra da Independência da Argélia houve mulheres que se bateram pela liberdade?’ Ela não sabia. Nunca tinha ouvido falar de Djamila Bouhired, combatente e heroína da revolução argelina e da batalha de Argel. E eu disse-lhe: ‘Vês? A tua mãe foi mais livre do que tu.’ O que se passa na França com os imigrantes árabes é de tal modo humilhante que a religião tornou-se para eles o caminho do respeito. Para as mulheres, sobretudo as mais jovens, isso é terrível: elas não querem trair o Islã, pois isso significa trair o respeito da família. Por outro lado, esse respeito impõe-lhes a sua submissão.”

“Consultórios de Deus” é muito mais do que um documentário. O filme é construído por um naturalismo antitelevisivo... e forjado. Isto porque, no contracampo às jovens anônimas que vemos ‘desfilar’ nas entrevistas, não são assistentes sociais reais, mas atrizes que se solidarizaram com a causa (Nathalie Baye, Béatrice Dalle, Nicole Garcia, Isabelle Carré, Marie Laforêt) e um ator (Emmanuel Mouret), para que tudo não se escreva apenas no feminino. Aquelas não são conversas do quotidiano, mas representações trabalhadas e ensaiadas. Esta ideia é misteriosa: quem fala com as jovens, não só muçulmanas (também aparece uma filha de imigrantes portugueses), é afinal a nata do cinema francês. Por quê? “Eu queria que as atrizes se confrontassem com a própria imagem que representam na sociedade. Quis confrontá-las com uma ideia pura e radical de representação. Foi a melhor maneira que encontrei para evitar fazer um filme militante. Pensei que era o único modo de reencontrar alguma verdade naquele jogo: ter em simultâneo o quadro e o seu motivo. Eu sabia que não conseguia fazer um documentário puro, por isso é que demorei muito tempo a encontrar um sistema. Desde a minha primeira visita a Grenoble, fiz mais quatro filmes. Estes ‘consultórios’ foram-se arrastando... não queria reproduzir a realidade tal como ela é. Acho que ‘Consultórios de Deus’ consegue tocar nesse ponto, sem ser um filme de sociologia. É um filme de cinema. De mise-en-scène.”

Talvez isto explique os seus longuíssimos planos-sequência. Como se as sequências sem cortes fossem o único antídoto contra os documentários da TV, saturados de informação, desmultiplicados em pontos de vista. A Claire Simon, o que lhe interessa é a tensão da realidade de um momento, não o que o momento representa, e isso faz toda a diferença nestes ‘consultórios’. Que são de Deus. Porquê de Deus? “Porque é um filme sobre a criação. Sobre a escolha de um grupo de mulheres que se interrogam se têm poder sobre a sua própria vida. Esse poder é frágil. É a história da Humanidade.”


Autor: Gutto Byagn
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