Brasil a la Roussef

domingo, 7 de novembro de 2010

Passado o vendaval da mais agressiva campanha eleitoral do Brasil pós-ditadura militar — mas ainda assim incapaz de desviar a nação dos trilhos de um projeto que vai agora inaugurando sua terceira etapa — é possível antever o caminho traçado pela primeira mulher escolhida por quase 60% dos 190 milhões de brasileiros para governar seu país.

Brasil a la Roussef


Mais importantes que o fato de Dilma Roussef se tornar a primeira mulher presidente de um país em grande parte conservador e machista são as qualidades da presidente. Sementes de boa cepa, resistentes à seca e às tempestades, elas se desenvolveram num solo dizimado pela idéia de que não passava de uma “invenção política” do presidente Lula. Cresceram teimosamente a cada golpe desfechado pelo jogo desleal de uma oposição disposta a reconquistar a qualquer preço o poder. Terminaram por vicejar frondosamente, a ponto de derrubar o mito com que geralmente se procura desclassificar as eleições presidenciais brasileiras — travadas entre os “dois Brasis” que coexistem num país de proporções continentais, com um eleitorado dividido em “segmentos” de classe. Dilma seria, segundo tal ponto de vista, a candidata dos pobres e analfabetos de regiões atrasadas, derrotada nos estados “modernos” dos ricos e educados.

Dilma venceu no conjunto do Brasil, e em todas as classes sociais, pela franqueza, coragem e sentido pragmático com que colocou na boca de cena da política brasileira a competente executiva dos bastidores dos oito anos do governo Lula e sua extraordinária familiaridade com os grandes problemas e a complexidade do Brasil. Por maior que tenha sido o empenho dos grandes meios de comunicação, e por milhões que tenham sido as mensagens apócrifas que se espalharam como vírus pela internet nos últimos meses, Dilma desconstruiu, uma a uma, as falsas personagens com que tentaram manchar sua candidatura.

Além de “criatura” de Lula, ela foi a “terrorista de alta periculosidade” que iria levar o Brasil a uma sangrenta luta armada; foi a doente em estado terminal que morreria ao assumir, deixando o governo para seu vice Michel Temer, fruto da coalizão com o velho PMDB, que a esquerda não consegue engolir. Foi também a mulher “libertina”, que viveu relações fora do casamento e que provavelmente teria se tornado lésbica (como explicar o fato de se candidatar à presidência sem um marido, senão através de uma possível atração por outras mulheres?); e, na versão da casta candidata a primeira-dama de seu adversário José Serra, tornou-se até mesmo uma potencial “assassina de criancinhas” por ter considerado a gravíssima questão do aborto no Brasil um caso de saúde pública.

Foi esta a mulher que, em seu primeiro pronunciamento como presidente eleita, cercada por correligionários do Partido dos Trabalhadores, leu, durante 25 minutos, (Lula falaria de improviso, provavelmente) o discurso com que carimbou cada uma de suas promessas de campanha, e que em última instância podem ser traduzidas num mesmo e único esforço: o de manter e ampliar um projeto político visando a redistribuição de renda, sem que isso implique num processo de radicalização ou estimule uma polarização na sociedade brasileira.

De um lado, Dilma passou a borracha na tinta ainda fresca dos jornais que conspiraram abertamente contra ela e fez o elogio e a defesa intransigente da liberdade de imprensa. Estendeu à mão à oposição, comprometendo-se com uma proposta de pacificação e diálogo e, para surpresa de todos, chegou a citar nominalmente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como um político de quem guarda “as melhores impressões”.

Do outro lado, deixou claro que não haverá ajuste fiscal às custas do social: ao contrário da Europa, onde os governos estão dilapidando o Estado do Bem Estar, o Brasil à la Roussef vai gastar mais ainda que o de Lula nos programas sociais, nos serviços essenciais e dos investimentos em infraestrutura. Ela sabe que o Brasil jamais será um país desenvolvido enquanto houver brasileiros com fome, famílias morando nas ruas e crianças abandonadas à sua própria sorte.

Em tempos de crise como a que o mundo se encontra mergulhado, este Brasil seguirá estimulando seu mercado interno e sua poupança. Vai aprovar um fundo social para investimentos na educação com os recursos do pré-sal e no modelo de partilha na exploração do petróleo. E vai manter inalteradas as diretrizes da política externa dos últimos anos, principalmente no que toca ao fortalecimento das relações Sul-Sul, especialmente com a América Latina — ao mesmo tempo que deve bater mais fortemente na luta contra o protecionismo dos países ricos e contra a guerra cambial.

Com estes elementos, é possível entender Dilma Roussef pela lógica de consolidação de uma novíssima social democracia brasileira, ou pelo espírito revigorado de uma esquerda da qual os países centrais foram sistematicamente se afastando a partir dos anos 70, até abandoná-lo definitivamente com a adesão incondicional aos princípios neoliberais globalitários dos anos 90. Dilma terá mais facilidades neste processo de consolidação: os dez partidos da base governista, liderados pelo PT, conquistam pela primeira vez ampla maioria no Congresso Nacional e governar, aparentemente, vai ficar mais fácil.

Ao mesmo tempo, o Brasil sombrio e subterrâneo que emergiu do ódio e da polarização que alimentaram a campanha presidencial deste ano deu provas da resistência de sua sobrevida. Foi possível sentir no ar, o tempo todo, o desconforto anti-igualitário de uma classe média temerosa de perder seus privilégios diante do novo contingente de brasileiros que chega enfim a seu patamar.

Não é a primeira vez que isto acontece: foi assim nos momentos críticos que antecederam a morte trágica de Getúlio Vargas em 1954; na resistência à posse de Juscelino Kubitschek, em 1955; na manobra constitucionalista que evitou que o vice de Jânio Quadros, Jango Goulart, o substituísse depois de sua renúncia, e na desconstrução da liderança de Goulart como presidente, que culminou com o golpe militar que o depôs de 1964.

As garras afiadas deste Brasil sombrio voltaram a se retrair, mas a campanha para 2014 já começou. Como Lula, o primeiro operário a chegar à presidência, Dilma, a primeira mulher, não pode errar. Oxalá suas qualidades a levem a impor sua própria marca nos próximos quatro anos, de importância fundamental para o futuro do Brasil e de toda a América do Sul.

Elisabeth Carvalho é jornalista no Rio de Janeiro e apresentadora do programa de entrevistas Milênio, na Globonews


Autor: Elisabeth Carvalho
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Existe 10 comentários para esta publicação
terça-feira, 9/11/2010 por GOETHE-Br
coincidencias...
Elizabeth.conicidem com o quadro atual o fato de que com a morte de tancredo,foi empossado o ex presidente da antidemocrática ARENA...srsDEMonios tucanizados...não transformem o nosso sonho em pesadelo...GOETHE-Br.
segunda-feira, 8/11/2010 por Rui Lourenço
Dilma... por Elisabeth Carvalho
D.Dilma já começou o joguinho de seu antecessor... Os nossos problemas com o câmbio são culpa dos americanos e chineses... Que tal reduzir os gastos públicos, deixando o populismo enganador de lado? Todos os nossos problemas são culpa dos outros...
segunda-feira, 8/11/2010 por Rui Lourenço
Dilma... por Elizabeth Carvalho
Coitada dessa comentarista Esabeth Carvalho. E coitados dos que acreditam em Lula, Dilma e PT. E coitados dos que não têm culpa de toda essa miopia... Fico lembrando Collor, Chavez, Hitler, Stalin...
sábado, 6/11/2010 por José Crisóstomo de Souza
Direita Fascista tem raiva da Democracia e do Povo!!
Qdo não sabe mais o que fazer, a direita fascista xinga o povo. O Sul do país repetidas vezes elegeu os maiores corruptos da nossa história: Ademar de Barros, Moisés Lupion, Maluf. Dilma foi bem vontada no país todo. Ela se elegeria sem o Nordeste.
sexta-feira, 5/11/2010 por Sebastião
Contradições 2
...em janeiro será entregue aos seus donatários.é esperar para ver. O impresionante,é ver pessoas intelectualmente bem preparadas abraçarem a equivocada bandeira dessa senhora e seu"companheiros" que vem com sede ao pote hoje são 250mil cargos comis
sexta-feira, 5/11/2010 por Sebastião
Contradições 1
...Fernando Collor,Jader Barbalho, isso sem falar nos petistas envolvidos em escandalos e roubalheiras como Zé Dirceu,Palocci,Genoino e tantos outros. Mesmo que ela quisesse fazer difernte, o comprometimento não lhe permitiria.O país já está loteado.
sexta-feira, 5/11/2010 por Sebastião
Contradições
Não é só o mapa do analfabetismo que a contradiz.Existem muitos outros números contraditórios.Mas do que números,ações contarditórias.Como essa senhora vai melhorar o país levando para os eu governo a escória da política do pais. José Sarney....
sexta-feira, 5/11/2010 por Suzana Maciel
Revista Vida Brasil
O espaço para comentário só é condizente para se concordar das matérias. Não é possível desenvolver um argumento em 4 linhazinhas
sexta-feira, 5/11/2010 por Suzana maciel
Brasil a la Roussef
A jornalista pode achar o que quiser, mas não pode mentir quanto aos números. Só 29% votaram em Dilma e o mapa do analfabetismo tb a contradiz.
quinta-feira, 4/11/2010 por João Carlos Rodrigues Filho
A verdade venceu a hipocrisia
Muito boa a matéria, o colunista fez um breve e eficiente passeio pela campanha de baixo nível desenvolvida pelos adversários da 1ª Presidenta da Republica Federativa do Brasil. Felizmente, verdade venceu a hipocrisia.
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