Demétria, terra livre

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O espírito de Demeter,esteve presente na jornada onde se conheceu como funciona um organismo agrícola vivo e se tomou consciência dos desafios de manter uma ilha de sustentabilidade em meio a uma civilização insustentável. Nestes tempos em que a urbanização avança acelerada e desordenada ao longo da rodovia Gastão dal Farra, é inevitável e mesmo imprescindível que aconteça um movimento para fortalecer internamente o bairro rural Demétria, que tem o seu acesso a partir dessa estrada.

Demétria, terra livre


Num primeiro encontro que reuniu cerca de 40 pessoas das mais diversas idades, foram agendadas tarefas coletivas, como a realização de novos encontros comunitários na fazenda e a formação de grupos de trabalho para atuar em parcerias diversas. Durante a roda de conversa que se formou após o almoço comunitário, uma frase ecoava no ambiente: “A imagem do futuro que tememos só pode ser superada pela imagem do futuro que queremos”.

Vivência de agroecologia: A jornada domingueira começou com uma caminhada rumo às diversas atividades de prática biodinâmica. O guia do grupo foi Paulo Cabrera, administrador da fazenda nos últimos dez anos que se prepara para cumprir um novo contrato de arrendamento por mais três anos com a Associação Beneficente Tobias, proprietária das terras.

Não se distingue quem é patrão ou empregado, trabalhador ou visitante. Todos compartilham a mesma mesa e o mesmo respeito.

Logo ficou claro que não se trata simplesmente de plantar e colher ou criar e comer. Trata-se principalmente de desenvolver uma relação harmoniosa com a terra, o ambiente que a envolve e os seres que nela habitam. O grande desafio é melhorar o rendimento do solo, aperfeiçoar o ambiente e desenvolver uma relação de mútuo respeito entre os seres. Na prática biodinâmica, a meta vai além do desempenho econômico, busca a formação de um organismo agrícola saudável que respeite a individualidade de cada elemento e a sua relação com o todo. Essa meta implica em resistir às demandas do atual sistema econômico que transforma tudo em mercadoria, degradando os seres e as relações entre eles para diminuir custos e aumentar lucros. Quando os 140 hectares que formam a Estância Demétria foram comprados em 1974, o chão estava seco e gasto pelas muitas queimadas anuais feitas para forçar o rebrote dos pastos.

Muito trabalho vem sendo feito ao longo dos anos e precisa ser constantemente renovado para despertar a fertilidade de um solo difícil pela sua própria natureza arenosa e piorado pela prática secular das queimadas. A Estância Demétria manteve a vocação da antiga fazenda na criação de gado leiteiro, introduzindo uma nova abordagem. A vitalização dos pastos aboliu o uso das queimadas e introduziu o pastoreio com rotação de áreas e roçado das sobras de capim. Em lugar dos piquetes que costumam marcar o pastoreio com rotação, usa-se cercas móveis e arborização em curvas de nível, com o plantio de culturas específicas.

Reino das Chifrudas: O plantio de leguminosas como guandu, leucena, ervilhaca e feijão de porco ajudam a fixar os elementos que nutrem e vitalizam o solo. O rebanho leiteiro precisa ser muito bem alimentado e cuidado, pois cumpre a dupla função de alimentar a gente e adubar a terra. É o melhor aliado na busca pela fertilidade do solo e através dele a natureza realiza um ciclo de vida completo.

Nada de confinamento, nada de estimulantes químicos ou rações transgênicas. O gado se alimenta da comida viva dos pastos livres e da ração natural feita à base de milho. Atualmente, o rebanho da Estância Demétria possui 150 cabeças com 44 delas em produção, numa média de 8 a 10 litros/dia por vaca. Além da alimentação nutritiva, a qualidade do rebanho é reforçada por cruzamentos entre as espécies de gado holandês, Gir e Jersey.

Uma imagem que diferencia a prática biodinâmica da convencional está no rebanho de vacas com chifres. Ao contrário do que ocorre nas fazendas tradicionais, eles não são retirados. Permanecem para que se mantenha a integridade das vacas pois é suposto que a biomassa por elas ingerida (uma boa quantidade de vida em forma de pasto), as transforma numa usina de forças que são absorvidas pelas extremidades (chifres e cascos).

Logo ficou claro que não se trata simplesmente de plantar e colher ou criar e comer. Trata-se principalmente de desenvolver uma relação harmoniosa com a terra, o ambiente que a envolve e os seres que nela habitam.

A alquimia biodinâmica usa os chifres como veículos de um ritual consagrado para a promoção de fertilidade e vitalidade. Após serem energizados durante uma vida, os chifres são preenchidos com o esterco das vacas e descansam e fermentam na terra durante o inverno, quando o solo está mais ativo. Esse tipo de “adubo” é então diluído e dinamizado em tambores com água e finalmente aspergido sobre a terra e as plantas, sensibilizando-as para a integração com as forças terrestres e cósmicas. Outros preparados são feitos com elementos dos reinos mineral, vegetal e animal, através da interação entre a ação do agricultor e os ritmos da natureza, sempre visando a vitalização do organismo agrícola.

Mãos carinhosas: Assim como a prática biodinâmica requer que se toque e se manipule o adubo artesanalmente, também as plantas que por ele são nutridas devem ser tocadas e acariciadas. A interação entre o produtor e o alimento que está sendo cultivado precisa estar presente em todo o ciclo. Além das frutíferas, as culturas predominantes comercializadas pela Estância Demétria são batata inglesa, batata doce, mandioca, mandioquinha, salsa, cebola e alho. Como forrageiras para o gado são plantadas espécies como milho com guandu e aveia preta com ervilhaca. As plantações se alternam num sistema de rotações.

Atualmente, as plantações representam 20% da área total da fazenda e as pastagens, 60%. Os restantes 20% constituem reserva florestal e construções de moradia e serviço. Além do laticínio onde se processam os queijos, iogurtes e manteiga, a fazenda possui uma fabrica artesanal de sorvetes e geléias. Dispõe ainda de uma padaria e uma bioloja no vizinho sítio Bahia. Já existiu o cultivo de trigo na fazenda, mas trata-se de uma cultura difícil de lidar na região da Demétria e busca-se incrementar a produção de pães à base de abóbora, mandioca e milho, que são produzidos localmente.

Mas, quem sabe devido aos condicionamentos introduzidos pela colonização, os habitantes do país da mandioca e do milho ainda preferem o trigo.

 Está na mesa: Após a instrutiva caminhada pelos campos da fazenda, os participantes da jornada domingueira celebraram um almoço comunitário. Além dos quitutes deliciosos que os convidados levaram, foi para a mesa uma boa amostra dos alimentos processados na fazenda, como pães e laticínios diversos acompanhados por sucos de frutas.

Em lugar de pertencer a pessoas físicas, a fazenda deveria pertencer a uma instituição filantrópica que recebesse a incumbência de desenvolver a agricultura biodinâmica no Brasil.

Durante o banquete comunitário foi possível observar um importante diferencial das relações sócio-ambientais nas fazendas de agricultura orgânica familiar – que muitas vezes fica escondido quando se avalia a composição de custos dos produtos. Não se distingue quem é patrão ou empregado, trabalhador ou visitante. Todos compartilham a mesma mesa e o mesmo respeito. A qualidade de vida dos trabalhadores e as relações entre as pessoas são dignificadas e valorizadas, ao contrário do que acontece nos grandes empreendimentos agrícolas que priorizam o uso das máquinas que destroem o solo e relegam o trabalhador rural a uma condição servil e indigna.

Além de usar os agrotóxicos que envenenam pessoas e terras, muitas empresas agrícolas conseguem preço competitivo e lucro explorando mão de obra barata em condições grosseiras de trabalho e moradia. Ao comprarem um produto orgânico, as pessoas pensam em geral na própria saúde, mas muitas vezes reclamam do preço esquecendo que o barateamento de custos se faz geralmente à custa da dignidade humana e da integridade da natureza.

A verdade na roda: A jornada domingueira prosseguiu após o almoço com uma roda de conversa. As crianças e os cães também participaram, cada um à sua maneira. Foram então colocados os desafios que se apresentam para a continuidade dos trabalhos na Estância Demétria e a necessidade de os moradores do bairro criado a partir dela se envolverem mais com o seu destino. Um importante passo já foi dado com a implantação do CSA (Agricultura Apoiada pela Comunidade, ou Community Supported Agriculture, em inglês), movimento que transforma os consumidores em parceiros dos produtores, formando grupos que garantem uma compra mensal direta a preço fixo.

É preciso porém ir além dos fenômenos puramente econômicos para analisar os impulsos que estão por trás deles. Dados fornecidos durante a conversa de domingo revelam que, nos últimos dez anos, a Estância Demétria conquistou uma valorização dez vezes maior. Uma conquista que é fruto do trabalho mas principalmente da especulação financeira, que transforma a fazenda, na lógica perversa do capitalismo financeirizado, num produto comercial muito rentável. Esse canto da sereia ameaça todo um patrimônio sócio-ambiental e cultural construído ao longo de 36 anos que precisa ser visto, analisado e trabalhado a partir de um impulso inovador e criativo que considera terra, trabalho e capital como meios de produção e não produtos ou mercadorias.

Vale a pena relembrar, a esse respeito, como foi que tudo começou. Porque é sempre bom conhecer de onde viemos para saber aonde vamos. Voltemos à antevisão de futuro dos inspiradores e fundadores da Estância Demétria, quando a antiga fazenda Tranca de Ferro foi comprada e libertada. Passemos a palavra a Pedro Schmidt: “… o Marco mostrou-nos diversas terras, um dia ele levou-nos à fazenda Tranca de Ferro e após andarmos nela, chegamos às jaboticabeiras que hoje ainda existem. Comendo frutos saborosos e cuspindo as cascas, decidimos comprar a fazenda…O natural seria comprá-la em nosso nome. Mas então a terra seria propriedade da família e, um dia, familiares que não tivessem ligação com a Biodinâmica, mas precisassem de dinheiro, iriam vender terra e gado e todo o esforço de melhorar a terra se perderia”.

Logo ficou claro que não se trata simplesmente de plantar e colher ou criar e comer. Trata-se principalmente de desenvolver uma relação harmoniosa com a terra, o ambiente que a envolve e os seres que nela habitam.

Os jovens visionários do passado chegaram à conclusão que era necessário neutralizar a propriedade da terra, emancipando-a das antigas relações de direito do uso individual para o uso comunitário. Em lugar de pertencer a pessoas físicas, a fazenda deveria pertencer a uma instituição filantrópica que recebesse a incumbência de desenvolver a agricultura biodinâmica no Brasil. Acreditavam os fundadores da Estância Demétria na necessidade de se criar “comunidades de doação”, onde a agricultura seria a base para o desenvolvimento de uma nova cultura que privilegiasse as artes, a pedagogia criativa e curativa, a medicina natural, a religiosidade. As diversas atividades das comunidades assim criadas deveriam se apoiar e complementar, formando uma “ilha cultural”, como relatou Schmidt: “Já nos anos 1920, o Rudolf Steiner falava da necessidade de formar comunidades ou ilhas culturais para fazer frente à decadência social que viria. Baseada nisto havia, por ocasião da compra da fazenda, uma leve esperança de que ela pudesse desenvolver uma agricultura biodinâmica como base para outras atividades culturais”.

A leve esperança dos visionários do passado transformou-se em realidade num futuro que para nós é presente. Uma boa amostra de que com a força de nossos pensamentos, palavras e atos, podemos construir o mundo que queremos.


Autor: Anjee Cristina
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Existe 1 comentário para esta publicação
sexta-feira, 19/8/2011 por Germana Pinto
Exemplo de respeito
São escolhas simples como não ingerir veneno através da alimentação ou tratar as pessoas como gostaríamos de ser tratados que criam uma civilização mais consciente. Exemplo a ser seguido pelos que dão importância ao respeito por si e pelo próximo.
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