A METÁFORA

domingo, 24 de junho de 2012

ERA UMA VEZ Maria, que vivia ensimesmada nos livros que lia. Os livros de Maria tinham capas duras como corações de pedra. Mas havia as traças. E elas acabaram destruindo, ao longo do tempo, vagarosamente, as capas duras dos livros que Maria lia. Os buracos foram aparecendo um a um. O ar foi entrando. Também umidade, poeira, farelos de pão, substâncias de toda sorte. Enfim, tudo o que se enfia por entre páginas de livros, inclusive ideias e sustos.

A METÁFORA

 
“Parece que isso pode ser, afinal, o que a palavra viver significa de verdade, quando a gente brinca com ela.”

 

Maria, assim, acabou por sair de dentro dos livros que lia. Foi quando percebeu que o mundo era mesmo todo feito de livros, exatamente como ela pensava que fosse. Havia também todo o resto das coisas que faziam parte desse mundo de Maria, mas essas não importavam tanto, parece. Os livros, sim, importavam. A diferença entre eles, contudo, ficava no fato de que os livros que formavam o mundo eram de dois tipos: uns com traças, outros sem elas. Uns com buracos, outros sem nenhum. Sendo que todos os livros, indiferentemente, acabariam devorados pelas traças algum dia.

 

A morte devora a vida dos homens, e traças devoram as letras dos livros. Todos sabem que ninguém escapa. Nem os homens da morte, nem os livros das traças. Contudo, entre o existir e o extinguir, há um tempo a preencher, e inutilmente a vida da gente vai se inventando verdades cada vez mais absurdas, como costumam ser todas as verdades verdadeiramente inventadas.

 

Mas acontece que nesta história inventada — como é o caso de todas as coisas não acontecidas — havia um João. Mesmo de longe, era ele também afetado desse mesmo malefício executado pelo serviço diligente das traças. E esse João, que se julgava um sábio, já sabia que o mundo era feito de livros. E de outras coisas que ele, contudo, achava que valiam a pena.

 

Um dia, por causa de um livro, João encontrou Maria, e ambos começaram a conversar. Falavam bons dias, formalmente. Depois, dos malefícios recíprocos, dos tempos de cativeiro, dos encantamentos e das traças. Conversavam em silêncio e ausentes, pois o falar de ambos se dava por notas apenas. Escreviam tudo nas margens dos livros que tinham, por cima e por baixo dos textos que outros já haviam escrito. Os livros do mundo, todos eles, são cheios de letras e de palavras. E aos personagens letrados desta história não faltavam palavras, aí incluídos um monte de verbos, substantivos, adjetivos e muitos advérbios pomposos, adequadamente lubrificados, bem como aqueles com os quais se escrevem provérbios, versículos, anedotas, dissertações e teses.

 

Conversavam muito, embora tristemente restritos ao pequeno espaço das margens. Ainda assim, pareciam satisfeitos com isso. Era o que tinham. Com o tempo, aprenderam a ser uma presença, mas no princípio não sabiam disso. Não assim, logo de cara. Antes, era apenas por notas breves que conversavam. Ausentes, sim, mas anotando a vida um do outro, e amontoando milhares de letras de diversas fontes, e muitos pontos e vírgulas e exclamações e interrogações, coisa de umas três mil notas com milhares de palavras e mais letrinhas avulsas, muitas, tantas destas que dariam para encher pratos e mais pratos de sopa. Ah! — e também travessões — que ela, a Maria dessa história, tinha gosto por eles, os tais travessões. Com o tempo, as traças de um e de outro se deram a conhecer e foram se tornando íntimas. Eles também. De uma intimidade esotérica e abstrata, todavia.

 

“E assim, como a vida tem encantos por toda parte, andam sem poder seguir o destino, que ninguém mais sabe nem pode saber que futuro esteja reservado a cada um.”

 

Pontuais, breves, corriqueiros, eram eles mesmos apenas por delicadeza e por curiosidade. Iam inventando uma vida vivida em palavras, alimentada de letras, uma vida feita de textos que contavam só as verdades mais letradas de cada um. Certo é que havia outros textos, sérios e concretos, com capítulos, índices, introduções, prólogos compridos, sem lugar para figuras, sem lugar para folhas dobradas, sem lugar para desenhos e riscos nas margens, desses que as crianças fazem com lápis de cor, e que eu faço até hoje nos meus livros. Eles apenas anotavam a vida um do outro, pontuavam-se, delirando. Talvez no verão. Quem sabe? E o verão ia e o verão vinha, e eles continuavam com o texto das vidas acontecendo à revelia de cada um, mas sempre com as notas, exatamente como as notas são, tendo apenas a função de explicitar algumas coisas e de camuflar outras.

 

E brincavam os dois, muito. Ainda que fossem apenas gente de verdade. Tinham vidas, órgãos, certidões, títulos, compromissos, mãos, dedos, braços, pernas, tronco, cabeça, orelhas, olhos, óculos e tudo! Mas com essas partes aí eles não brincavam, não. Nem com aquelas outras. Eles brincavam apenas com as palavras, porque as palavras existem para que com elas a gente invente todas as coisas que jamais aconteceram, mas que, nem por isso, deixam de ser a mais pura verdade que o coração pode inventar. Eram gente séria; ou fingiam ser. Mas também brincavam de Princesa e de Urso, com Maria virando uma princesa de faz-de-conta e João virando um urso: curioso, brincalhão, mas certeiro na patada. Brincavam de ser aquilo que eles seriam, se não fossem o que sempre foram, e se não fosse o tempo, as estações, as desculpas, o destino, a distância, a imensidão, as contingências, o correio. Se não fossem os créditos somados e os descréditos subtraídos às respectivas vidas, se não fossem as chuvas em São Paulo, o Lula, o terrorismo, o Guaíba, a Rua da Praia, a 25 de Março e a 7 de Setembro, as traças, os livros, os ácaros, eles e elas, os outros, os daqui, os dali e os de lá, todos formando uma imensa Cia. Se não fosse tudo isso, então, como seria? Então escreviam, escreviam, escreviam... Brincando com as notas, é claro. Brincando com as bandeirinhas, com o mapa do Brasil, com Nélson Rodrigues, com a diabete, com o enfisema, com a mesa da cozinha, com a história, o Radecki, o Lombroso, o Gabriel, os exames médicos, os prognósticos esperançosos que se seguiam aos diagnósticos sombrios.

 

E antes que algum desavisado me pergunte exatamente de que eles brincavam, eu vou logo dizendo que passavam o tempo brincando de significados. Adultos, quando brincam, só brincam disso. É mais politicamente correto e menos arriscado que o antigo fazer de conta infantil. João e Maria eram complexos, sinistros como todos os adultos. Brincavam apenas assim. A importância e a razão maior de brincar de significados é que as palavras não podem ficar presas para sempre ao que os dicionários dizem delas. É preciso libertá-las da rotina que as escraviza e que as condena a valeram sempre pelo que são.

 

“O que mais preocupa dentre as palavras perdidas desta história é que a palavra Maktub, que aparece em outro conto maluco desses, também foi roída e esburacada.”

 

Tão triste ser apenas aquilo que se é, e mais nada.  Bem como eles eram, esse João e essa Maria. Sempre vistos de acordo com o seu respectivo funcionamento. Como as palavras que permanecem submissas aos dicionários. Como elas, eles também tinham seus papéis, funções, fardos e enfartos. Daí o empenho de brincarem tão a sério com palavras, fazendo com que significassem sempre muito mais do que queriam dizer. Nem mesmo um não sempre é não. Ele às vezes pode ser, sim. Pode também não ser, sim, se tropeçar nesta vírgula aí. A engenharia da pontuação, como todos sabem, é inspirada pela cabala, e não há verdade que algum dia não tenha sido mentira.

 

E assim, as coisas se iam descrevendo, e o mundo ia tomando a forma que as palavras lhe davam ao bel prazer das notas. As notinhas. Sempre pontuando a vida de cada um. A vida que passava e que passa ainda, inexorável, pelo metrô e pelo Guaíba e, sobretudo, pela voracidade tenaz das traças. E eles iam vivendo. E a vida passando, arrastando com ela tanta coisa que eles sempre souberam perder com elegância, ora com, ora sem valentia. Vida habitada, lotada de coisas, de outros e outras, e ainda livros, contas, desesperos, alegrias, orgulhos, expectativas, objetivos, canseiras, tristezas, prazos, processos, compromissos, deveres, honras, cozinhas, salas, latrinas, remédios, decepções, esperanças. Hospícios? Tudo no lugar. Tudo parte dos livros, dos scripts, das histórias bem contadas, sempre tão mal contadas. Tudo?

 

Tudo, sim. E, no fundo, um tudo tão cheio de nada, um fundo tão raso de profundezas, que só as malditas notinhas de rodapé mesmo para pôr um pouco de fantasia, de magia, de brincadeira, de sentido àquela sucessão de acontecimentos lógicos, previsíveis e prosaicos, cheios de aparente seriedade, bem do tipo que é para valer, porque todos sabem que a lógica do absurdo é implacável, é substancial como um hipopótamo. De bom mesmo, pelo menos havia as notinhas simples, não obrigatórias, limitadamente escritas, com hora marcada, dentro das regras, como tudo o que é perigoso, arriscado, imoral ou mesmo rigorosamente desnecessário. Bem assim como a presença de cada um deles nas páginas dos livros do outro. Inútil, sim. Desnecessária e até incômoda presença, mas nunca, jamais, uma presença redundante, e isso desde aquele tempo. 

 

“As traças comeram quase tudo o que estava escrito, e que era a parte séria das vidas de cada um.”

 

Aí aconteceu a tragédia da qual esta história vai tratar, pois histórias como esta devem ter exageros de tragédias. Se não fosse assim, os finais felizes — se é que esta história terá um — estariam todos condenados à insipiência, à sensaboria, a significar coisas que só essas palavras retumbantes como música marcial podem fazer significar.

 

A tal tragédia consistiu numa misteriosa proliferação das traças que teve lugar um dia. Como se uma praga bíblica, rogada do alto da montanha, houvesse multiplicado os bichos que, excitados, devoravam tudo: páginas e capas, a cola, as letras e até as fitas e os santinhos guardados por dentro das páginas dos livros. E então os livros, dentre estes justamente aqueles onde estavam escritos os destinos da Maria e do João desta história, acabaram todos furiosamente atacados.

 

“Tudo por causa das traças. Tudo por causa do papel em branco que restou e que devia ser todo preenchido, não mais por textos, mas pelas notas, elas mesmas, pelas delirantes notas que pontuavam as solidões.  Até que as notas cessaram.”

 

Aí, sem livros inteiros nem destinos traçados, as notas acabaram tomando conta dos textos. As traças comeram quase tudo o que estava escrito, e que era a parte séria das vidas de cada um. Destruíram a lombada dos livros onde o destino deles estava traçado, e misturaram as páginas, perfurando o número de cada uma delas. Então, as histórias das vidas de cada um — que eram para estar separadas em prateleiras diferentes — cada uma em um livro, acabaram com as páginas todas confundidas e misturadas, sem que se pudesse saber o que vinha antes e o que vinha depois, sem contar os durantes que se tornaram perpétuos.

 

Pior ainda foi que se perderam os significados reais de algumas palavras que conseguiram escapar à ditadura dos dicionários. Imaginem só, se algum dia neste mundo em que vivemos os eu te amo banais começassem a ser para valer! Quanta confusão!  E veio o caos assim. Tudo por causa delas, as traças. Vai ver, cruzamentos pouco recomendados a originar outras traças de maior agressividade e gula. Traças transgênicas que devoraram os livros deles onde estavam escritas  as regras do mundo.

 

Culpa das traças, sim. Culpa delas, que iam e vinham de lá pra cá. Como todos sabem, as traças, ainda que entupidas de letras, nunca souberam nada dos números e, não sabendo contar, acabaram por misturar tudo. Foi assim que o Urso, que não era Urso, acabou virando Urso de verdade inventada; a Princesa, que era de faz-de-conta, acabou Princesa de verdade inventada também. E as traças comeram até o final da história.

 

As notas acabaram por substituir os textos da vida de João e de Maria. Diante do inexorável, não houve outro jeito senão passarem a levar a sério o fato de que, dali por diante, seriam Urso e Princesa, não sobrando mais ninguém para tirar um e outro do surto em que se meteram. Tudo por causa das traças. Tudo por causa do papel em branco que restou e que devia ser todo preenchido, não mais por textos, mas pelas notas, elas mesmas, pelas delirantes notas que pontuavam as solidões.  Até que as notas cessaram. A Princesa quis ver de que cor era o Urso, e o Urso quis conferir se ela calçava mesmo 34.

 

E como os livros se perderam e as notas escassearam, João e Maria acreditam agora que são Urso e Princesa e andam pelo mundo a se desencontrar, até hoje.

 

O que mais preocupa dentre as palavras perdidas desta história é que a palavra Maktub, que aparece em outro conto maluco desses, também foi roída e esburacada. E agora não existe mais nada escrito, e eles terão de escrever, cada um do seu jeito, as próprias histórias. Livros não há mais, nem scripts, nem definições. Os dicionários, apavorados que pudesse a brincadeira contagiar seus verbetes, fecharam-se em copas e muitos se recusam hoje a expor suas páginas ao risco das patadas do Urso ou dos delírios da Princesa, que come romãs e toma luar em vez de sol.

 

“Pior ainda foi que se perderam os significados reais de algumas palavras que conseguiram escapar à ditadura dos dicionários.”

 

E assim, como a vida tem encantos por toda parte, andam sem poder seguir o destino, que ninguém mais sabe nem pode saber que futuro esteja reservado a cada um. Sabe-se apenas que eles permanecem, ao menos por enquanto, ainda reféns do cativeiro que os mantém cativos e cativados. É que, como as traças comeram o caminho de volta, comeram o final da história, comeram os números das páginas, comeram os registros, as certidões, os documentos, as escrituras, os títulos de propriedade e os bacharelatos, só restam folhas soltas do que um dia foi o Livro da Vida de cada um. E agora eles podem fazer o que quiserem das páginas em branco que profusamente o Word edita e cursor percorre deixando, por toda parte atrás de si, letrinhas diversas que formam palavras insensatas que só os loucos e os apaixonados conseguem entender, coisa que Olavo Bilac já sabia, quando falou de estrelas.

 

Parece que isso pode ser, afinal, o que a palavra viver significa de verdade, quando a gente brinca com ela. Viver é fazer sentido para a gente mesmo, ainda que isso implique num texto sem clareza, sem qualidade, sem nitidez, arbitrário e tão certeiro em seu hermetismo que só pode ser decifrado por quem ama as palavras pelo que são, e não pelo que os dicionários dizem delas.

 

Como a gente, se pudesse valer sempre apenas pela emoção que desperta e que sente, sem rótulos, certificados nem propósitos. Daí a importância das traças. Às vezes é preciso saber brincar com tudo. Seriamente.

 

 

 



Autor: Maristela Bleggi Tomasini
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Existe 2 comentários para esta publicação
terça-feira, 26/6/2012 por Maristela Bleggi Tomasini
Aparecida Querida!
Bom te rever também nestas páginas onde a incerteza é certa. Beijos para você!
terça-feira, 26/6/2012 por Aparecida Mendes
Metáfora... João e Maria... Era uma Vez...
Amo esse texto, me chamo Maria e meu primeiro amor foi João. E, a vida continua como um livro ambulante... Parabéns Maristela querida!!! bjs.
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