O despertador tocou. Marcos Silas deu-se conta de que ia viver mais uma segunda-feira no banco onde era gerente. Virou-se para chamar Regina que fingira não ouvir o relógio. — Não faz mal, — pensou, — há tempos a mulher andava assim. Levantou-se, pensando em como era incômodo sair de terno e gravata em dia quente, fingindo que não sentia calor. Do banheiro, escutou barulho e gritos que vinham pequena cozinha do apartamento, cuja prestação estava cada vez mais difícil de pagar. Raulzinho escutava música àquela hora da manhã com o som a todo volume! Regina gritou, perdendo a paciência com o filho:
— Desliga essa porcaria, infeliz!
Marcos Silas aumentou o volume do rádio e demorou-se fazendo a barba. Era assim todo dia. Já estava acostumado a essas discussões. Afetava indiferença. No banco, também já se acostumara a parecer outra pessoa. Devia tratar bem os clientes em potencial e ser frio para com aqueles que pudessem trazer problemas. Temia ficar desempregado. Não tinha mais nenhum espírito empreendedor. Sentia medo do futuro. Vivia corroído de incertezas. O único alívio de que dispunha era fantasiar. Imaginar-se outro: sagaz, vencedor, seguro... Mas ele estava com 45 anos, era gordo, hipertenso, temia um enfarto. Havia o plano de saúde, o seguro de vida, a escola do Raulzinho, a meta de produção a cumprir, os produtos do banco a vender, o cartão de crédito, as dívidas; havia Regina. Coitada da mulher. Engordara também, tinha crises nervosas. Vivia doente, consultando médicos e mais médicos. Sofria de enxaqueca. Reclamava de tudo e de todos. Nunca trabalhou. Aos domingos, exigia sempre que fossem à casa da mãe dela. Raulzinho também era uma preocupação. O garoto era debochado e tratava o pai com desdém.
Conseguir a gerência fora a realização de um sonho. Acreditava que fora por sorte, porque jamais imaginou que pudesse chegar a um posto de chefia. Na verdade não havia decisões a tomar, pois bastava aplicar o regulamento, as portarias. Todos, porém, costumam imaginar que um gerente manda um pouco. Não faz mal. Era parte da encenação. Nem seu casamento significou algo de realmente importante. Regina, quando jovem, era desengonçada, tinha acne, os cabelos eram oleosos, a silhueta já anunciava uma obesidade que não demorou a aparecer. A família da moça era simples: rotina, ideias prontas, o noticiário do dia, as novelas, os malditos programas dominicais. As mesmas histórias de sempre. Namoro, noivado, vestibular e casamento, irremediavelmente. Uma festinha de bairro, gente gritando, ele sorrindo num terno alugado, a noiva nervosa muito apertada num vestido branco cheios de babadinhos, contente em casar-se com um rapaz honesto e trabalhador, caixa de banco, mas com algum futuro pela frente. Havia empadinhas, salada de batatas servida em bacia plástica, um bolo com os clássicos noivinhos por cima, empapados do merengue que já desandava. O cunhado problemático acabou com a festa. Embriagou-se e vomitou no salão da igreja.
Que vida! Marcos não se queixava, procurava ser sempre gentil. Por favor, com licença e muito obrigado era o que mais se ouvia dele. Era de uma probidade absoluta. Os primeiros tempos foram difíceis. Os sogros ajudavam. Nunca fora muito hábil em negócios, mas sua honestidade acabara por torná-lo um homem digno de confiança. Era respeitado na agência, e até elogios dos diretores-gerais ele já tivera o prazer de ouvir. Todos gostavam dele no trabalho. — Por que estou me lembrando disso tudo? — pensou, lavando o rosto na água fria e apressando-se para o café.
Vestiu-se, demorando a achar a gravata listrada que estava na gaveta das meias da mulher. Terno, camisa, sapatos engraxados, nada estava no lugar. — Regina anda cada vez menos atenta às minhas roupas! — Coitada, devia ser a coluna, — desculpou-se quase automaticamente, antes que lhe ocorresse a palavra relaxada para qualificar a esposa. — Coitada, — disse, tentando evitar as palavras que lhe vinham à mente: gorda, relaxada, azeda. — Pobre Regina! — disse em voz alta. Começou a cantarolar, fugindo aos pensamentos obsessivos, mas as palavras gorda, relaxada, azeda insistiam. Ele cantava. Não queria pensar nisso. Não queria pensar, mas pensava. Gorda, relaxada, azeda, fedorenta, baleia! Queria gritar tudo isso para Regina, mas limitou-se a cantar mais alto. Trocou de sapatos. Mordeu os lábios. Suas mãos estavam encharcadas de suor. Ele não tinha o direito de pensar isso da coitada da mulher. Logo ele, que não era grande coisa. Escolheu outra música. Há tempos essa era a fórmula secreta utilizada por ele, para reprimir a hostilidade que emergia cada vez que sentia vontade de mudar, de reagir, de pensar, de reclamar. Como queria não ser Marcos Silas — pensou. Como desejava ser outro...
Na cozinha, o café. Forte demais como sempre, a pressão ia subir. Regina era fascinada por comida. Nada podia faltar na geladeira nem na dispensa. A mulher mantinha estoques que conferia diariamente, anotando tudo o que fora consumido com a obstinação de um faminto. As compras começavam nas manhãs de sábado. Cada um empurrava um carrinho. Regina comandava a inspeção, ávida, atenta, comprando tudo em embalagens gigantes. Um dia ele tentara argumentar sobre um pouco mais de saladas e grelhados, quem sabe. Nunca mais tocou no assunto. Ela, literalmente, fuzilou-o com o olhar, acusando-o de querer fazer com que a família passasse fome. Nunca mais tocaram no assunto. Marcos Silas resignou-se.
No fundo, ele acreditava que devia isso a Regina, coitada. Afinal, nunca fora grande coisa como marido e, para dizer a verdade, nunca fora grande coisa como homem também. Ficava nervoso, tenso, ansioso. Tinha vergonha de aparecer nu na frente da mulher. Quando se conheceram, ela já havia sido noiva de um rapaz que sumira, depois de iludi-la com uma promessa de casamento. O moço era referido em família como o cafajeste que fizera mal à pobre da Regininha. O assunto era sempre evitado. Sexo? Apenas com respeito.
Marcos comia, enquanto pensava no que era sua vida. Estava gordo. Não era alto. Tinha um ar jovial, e seus cabelos ainda se mantinham firmes na cabeça arredondada que parecia emendar-se à gravata, por causa do pescoço curto e da papada que já aparecia e prejudicava um pouco sua respiração. Precisava lembrar-se de aumentar a medida dos colarinhos na próxima compra de camisas sociais. Não podia ficar se desabotoando no banco. Com o calor, tornava-se vermelho. Suava demais.
Enquanto comia e pensava, procurava não prestar atenção aos resmungos da mulher e às reivindicações de Raulzinho Mais um croissant aberto ao meio e recheado de nata. Mais café, com bastante açúcar. Depois queijos. Comia por comer, sem saborear a comida. Ia arrotar enquanto dirigia. Precisava ficar à vontade e estar bem antes de chegar ao banco. Lá, ele colocava a máscara, contemplando a placa: Marcos Silas — Gerente.
Regina também comia. Suspirava e falava sobre as qualidades marcantes da geleia de frutas vermelhas importada que devorou em poucos minutos. Ele nem quis provar, revoltado com o preço do produto que ela insistiu em colocar em um dos carrinhos de compras no último sábado, apesar do saldo devedor do cartão de crédito. — Renegocie, ora. Afinal, você é o gerente daquele tal banco pra quê? — rosnou ela agressiva e em voz alta, de modo que os outros clientes do supermercado que estavam por perto chegaram a voltar-se para ver cena que prometia desenvolver-se a seguir. Achou melhor levar a geleia e sair o quanto antes do setor de importados, de cabeça baixa, com medo de ser reconhecido por algum eventual frequentador do banco. Não provou a geleia importada de frutas de vermelhas. Ficou olhando Regina lamber os dedos que aprofundava no vidro como se fossem limpadores de para-brisas e depois levava à boca que sobressaia do queixo lustroso de gordura. — Como era feia! — pensou — feia, desengonçada, estúpida. A seguir, num jogo de pecado e penitência, pensou: — Coitada, coitada da Regina.
Raulzinho reclamava do horário da escola.
— Está bem, filho. Dê tchau para sua mãe. Como vai o colégio? — disse ele, tentado fazer o papel de pai interessado.
O garoto olhou-o com indiferença, como se lesse seus pensamentos e sua insegurança. No fundo, achava que Raulzinho o desprezava. O menino era insolente, sarcástico. Achou melhor não procurar diálogo. Era a adolescência, talvez por isso escondesse revistas pornográficas embaixo da cama.
Marcos Silas encontrou-as por acaso, ao entrar no quarto do filho para desligar o som que o garoto deixara ligado a todo volume. Não sabendo como lidar com o aparelho cheio de botões, abaixou-se para alcançar a tomada que ficava atrás da cama. Ali estavam as revistas que folheou devagar, observando atentamente as cenas. Então, repentinamente, imaginou que a mulher poderia entrar ali e flagrá-lo. Isso foi bastante para que, nervoso e culpado, se apressasse em deixar tudo exatamente como estava. Teve vergonha de si próprio, de sua incapacidade em lidar com o filho, e mesmo com a própria imaginação. Sempre que se lembrava disso, angustiava-se, como agora. O café esfriara na xícara.
Olhou para Raulzinho que o observava com ar debochado. Tentou sorrir, fazer-lhe um carinho, mas o menino esquivou-se ao perceber suas intenções. Saíram em silêncio até a garagem do prédio. O carro financiado não oferecia muito conforto, mas era quase novo. Deixou o filho no colégio e seguiu até o estacionamento que ficava próximo ao trabalho. Hora de chegar à agência.
Atravessando a porta de entrada, a máscara. Hora da máscara. Muita delicadeza e simpatia. Não se esquecer de cumprimentar ninguém. A máscara: bem sucedido, controlado, seguro de si, atencioso. Ele sabia como representar o papel. Fazia isso há anos. Às vezes sentia pena dos titulares de contas que era obrigado a encerrar, dos cheques que devia de devolver, dos juros que tinha de cobrar, dos seguros que precisava vender. Aí, devia ser duro, frio, empurrar os produtos. Não gostava de parar para pensar nisso. Não gostava de ser o que era, mas nunca fora capaz de ser outro.
Outro... — pensou. Alguém realmente importante, seguro de si, alguém que pudesse ser olhado com inveja, alguém que detivesse alguma espécie de poder, que fosse influente, rico, realizado, que pudesse decidir, e não fingir que decidia, como um mero porta-voz dos regulamentos do banco. Ter uma mulher bonita. Fazer aquelas coisas que apareciam nas revistas Raulzinho... Deixou-se divagar então. Sonhava acordado e sorria sozinho da ousadia de suas façanhas, até que o telefone tocou e, sobressaltado, ele voltou a ser apenas Marcos Silas.