EM PARATY PELO MAR

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A expedição de Magalhães existe não porque foi feita mas porque foi descrita. Antonio Pigafetta e outros cronistas asseguraram-lhe a eternidade. Deve-se chegar a Paraty pelo mar. Navegando a leste de montanhas abruptas e florestas impenetráveis, entre baías e cabos e ilhotas que jogam com a nossa percepção do espaço e da distância, atordoados com a geografia e a natureza. Hoje, chegar a Paraty pelo mar é um privilégio que está reservado a uma minoria elitista e rica que possui um iate.

EM PARATY PELO MAR

De resto, quase todo mundo chega ao pequeno porto caminhando desde a Estação Rodoviária — que é, também, um privilégio. Estar aqui, neste lugar iluminado à face da Terra e à borda do mar, é sempre um privilégio.

Ao longo de séculos de navegação, os que esperavam os navegadores descobriram o antídoto para o feitiço de navegar. Ergueram cantos de sereia em pedra e cor e harmonia vertical, abraços de abrigo que surgiam da linha de água e se ofereciam à atenção dos que passavam ao largo. Assim se explica Paraty.

No entanto, há outra minoria que pode chegar por mar sem ter um iate — basta que trabalhe num. O privilégio estende-se dos armadores e proprietários aos que sabem dar nós, içar velas, ler estrelas, seguir correntes, polir amuradas, envernizar mastros. Mas não se estende a mim. Eu só sei escrever. Sou um inútil a bordo.

Nas cinco naus da armada das Molucas seguem mais de duas centenas e meia de homens. Todos são homens de mar. Exceto um, que provavelmente nem sabe distinguir uma âncora de um astrolábio. Antonio Pigafetta é um jovem italiano de Vicenza, um diplomata e homem de letras que chega em 1518 a Valladolid, na altura a sede da corte espanhola, a serviço do embaixador do Vaticano Andrea Chiericati. O jovem Pigafetta depressa descobre que em Sevilha se prepara uma expedição aos limites do mundo e consegue ser admitido como membro da tripulação. Alguns historiadores admitem a hipótese de Pigafetta ter sido aceito por Magalhães segundo imposição do próprio Carlos V, na qualidade de observador imparcial da questão do anti meridiano. Se realmente o navegador comprovasse que as Ilhas das Especiarias se encontravam na metade espanhola do mundo, quem melhor que um enviado do papa, diplomata e homem de letras, para, no regresso à Europa, o testemunhar contra as pretensões portuguesas?

Seja ou não essa a razão que leva Magalhães a contratar Pigafetta, a verdade é que o italiano embarca de livre e boa vontade para o que imagina, corretamente, que será a maior aventura da sua vida. Stefan Zweig, na sua biografia romanceada escreve que “entre estes marinheiros de profissão, entre estes especuladores e aventureiros, aparece um estranho idealista, que não desafia o perigo pela glória ou pelo ouro, mas por uma simples paixão de globetrotter, um tipo que  põe a vida em risco pela alegria de ver, de admirar, de conhecer”. Uma genuína sede de aventura e uma curiosidade humanista são o motor da motivação do italiano. Pigafetta não sabe dar nós, nem içar velas, nem ler estrelas nem seguir correntes. Mas sabe escrever. Não é um inútil a bordo.

Hoje sabemos com bastante exatidão como decorreu a primeira viagem de circum-navegação do Globo. Sem Pigafetta, não o saberíamos. Não foi ele o único a manter um diário, a apontar notas ou a transmitir em depoimento os fatos da expedição, mas foi aquele que a soube expor como uma das maiores conquistas marítimas da Idade dos Descobrimentos. Vários membros da tripulação deixaram para a posteridade relatos mais ou menos detalhados da viagem de Magalhães. Para lá do livro de Pigafetta, os historiadores socorrem-se do diário de bordo do piloto grego Francisco Albo, que contém informações extremamente profissionais da rota da Armada; um documento de um anônimo referido como “Piloto Genovês”; uma descrição do imediato andaluz Ginés de Mafra; e um pequeno resumo da viagem atribuído a um marujo português, Vasquito Galego.

São também importantes as descrições que algumas testemunhas contemporâneas deixaram da viagem, baseadas em informações recebidas diretamente de alguns tripulantes. Entre essas fontes salienta-se o documento do comandante português que capturou uma das naves de Magalhães nas Molucas, António de Brito; e o dos dois secretários de Carlos V, o italiano Pedro Martir de Anghiera e o flamengo Maximiliano Transilvano. Para terminar esta listagem, falta referir o trabalho de cronistas contemporâneos portugueses que, de uma forma nada imparcial, se debruçaram sobre a viagem do ex-compatriota. João de Barros e Fernão Lopes de Castanheda foram impiedosos no seu julgamento de Magalhães, Damião de Góis e António Galvão mais compreensivos. Este tema sobre a perspectiva nacional do épico magalhânico é tratado de uma forma interessante e abrangente na comunicação de António Alberto de Andrade “Sentimentos de Honra e Direitos de Justiça na Viagem de Fernão de Magalhães”, proferida no Colóquio Luso-Espanhol de 1973 sobre a Viagem de Fernão de Magalhães e a Questão de Molucas, editado em forma de atas no volume homônimo.

Pigafetta descobre-se cronista da expedição e descobre a antropologia quando a Armada chega ao Brasil e pela primeira vez o italiano contata o “outro”. Antes, pouco aconteceu que despertasse a atenção do italiano. Mas na baía de Guanabara o mundo indígena torna-se o alvo das atenções de Pigafetta, que, de uma forma caricata, descreve tudo o que lhe passa à frente do olhar: o tipo de alimentos, a forma de vestir, a estrutura familiar, a religião (ou melhor, a falta dela) e os libertinos hábitos sexuais dos Tamoios, os habitantes originais do litoral carioca.

É um mundo novo, este que Pigafetta descreve, e como tal tudo é possível, tudo é provável. Espírito crítico, ceticismo, método científico e observação direta são ferramentas dispensáveis na bagagem do italiano: ou porque ainda não foram inventadas ou porque não se enquadram com a liberdade de imaginação que a Europa usufrui sobre tudo o que não conhece. Da mesma forma que agora, na costa do Brasil, Pigafetta nos dá uma improvável explicação para a origem do canibalismo, mais tarde, ao largo de Timor, nos descreverá ainda mais improváveis pássaros com asas tão largas que conseguem transportar elefantes, e homens com orelhas tão grandes que dormem cobertos por elas. Mas esses pormenores nada diminuem a importância de Pigafetta para a verdadeira história da primeira viagem à volta do mundo. Sem ele, os fatos teriam sido adulterados para proteger desertores, amotinados, traidores e cobardes. E o nome de Fernão de Magalhães teria hoje nada mais que uma pequena e obscura entrada em algumas enciclopédias especializadas. Mas Pigafetta garantiu o lugar devido na História ao seu capitão e desmascarou os que o traíram.

Por enquanto, contentemo-nos em sonhar com Paraty e com toda a costa do sul do Brasil vista do largo, vista a bordo. E admiremos os poucos que sem saber dar um nó e içar uma vela souberam içar-se a bordo da maior expedição aos limites do mundo, e descrevê-lo com pasmo, credulidade, entusiasmo e paixão.


Autor: A/Mathias
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