De resto, quase todo mundo chega ao pequeno porto caminhando desde a Estação Rodoviária — que é, também, um privilégio. Estar aqui, neste lugar iluminado à face da Terra e à borda do mar, é sempre um privilégio.
Ao longo de séculos de navegação, os que esperavam os navegadores descobriram o antídoto para o feitiço de navegar. Ergueram cantos de sereia em pedra e cor e harmonia vertical, abraços de abrigo que surgiam da linha de água e se ofereciam à atenção dos que passavam ao largo. Assim se explica Paraty.
No entanto, há outra minoria que pode chegar por mar sem ter um iate — basta que trabalhe num. O privilégio estende-se dos armadores e proprietários aos que sabem dar nós, içar velas, ler estrelas, seguir correntes, polir amuradas, envernizar mastros. Mas não se estende a mim. Eu só sei escrever. Sou um inútil a bordo.
Nas cinco naus da armada das Molucas seguem mais de
duas centenas e meia de homens. Todos são homens de mar. Exceto um, que
provavelmente nem sabe distinguir uma âncora de um astrolábio. Antonio Pigafetta é um jovem italiano
de Vicenza, um diplomata e homem de letras que chega em 1518 a Valladolid, na
altura a sede da corte espanhola, a serviço do embaixador do Vaticano Andrea
Chiericati. O jovem Pigafetta depressa descobre que em Sevilha se prepara uma
expedição aos limites do mundo e consegue ser admitido como membro da
tripulação. Alguns historiadores admitem a hipótese de Pigafetta ter sido
aceito por Magalhães segundo imposição do próprio Carlos V, na qualidade de
observador imparcial da questão do anti meridiano. Se realmente o navegador
comprovasse que as Ilhas das Especiarias se encontravam na metade espanhola do
mundo, quem m
elhor que um enviado do papa, diplomata e homem de letras, para,
no regresso à Europa, o testemunhar contra as pretensões portuguesas?
Seja ou não essa a razão que leva Magalhães a contratar Pigafetta, a verdade é que o italiano embarca de livre e boa vontade para o que imagina, corretamente, que será a maior aventura da sua vida. Stefan Zweig, na sua biografia romanceada escreve que “entre estes marinheiros de profissão, entre estes especuladores e aventureiros, aparece um estranho idealista, que não desafia o perigo pela glória ou pelo ouro, mas por uma simples paixão de globetrotter, um tipo que põe a vida em risco pela alegria de ver, de admirar, de conhecer”. Uma genuína sede de aventura e uma curiosidade humanista são o motor da motivação do italiano. Pigafetta não sabe dar nós, nem içar velas, nem ler estrelas nem seguir correntes. Mas sabe escrever. Não é um inútil a bordo.
Hoje sabemos com bastante exatidão como decorreu a
primeira viagem de circum-navegação do Globo. Sem Pigafetta, não o saberíamos.
Não foi ele o único a manter um diário, a apontar notas ou a transmitir em
depoimento os fatos da expedição, mas foi aquele que a soube expor como uma das
maiores conquistas marítimas da Idade dos Descobrimentos. Vários membros da
tripulação deixaram para a posteridade relatos mais ou menos detalhados da
viagem de Magalhães. Para lá do livro de
Pigafetta, os historiadores
socorrem-se do diário de bordo do piloto grego Francisco Albo, que contém
informações extremamente profissionais da rota da Armada; um documento de um
anônimo referido como “Piloto Genovês”; uma descrição do imediato andaluz Ginés
de Mafra; e um pequeno resumo da viagem atribuído a um marujo português,
Vasquito Galego.
São também importantes as descrições que algumas
testemunhas contemporâneas deixaram da viagem, baseadas em informações
recebidas diretamente de alguns tripulantes. Entre essas fontes salienta-se o
documento do comandante português que capturou uma das naves de Magalhães nas
Molucas, António de Brito; e o dos dois secretários de Carlos V, o italiano
Pedro Martir de Anghiera e o flamengo Maximiliano Transilvano. Para terminar
esta listagem, falta referir o trabalho de cronistas contemporâneos portugueses
que, de uma forma nada imparcial, se debruçaram sobre a viagem do
ex-compatriota. João de
Barros e Fernão Lopes de Castanheda foram impiedosos no
seu julgamento de Magalhães, Damião de Góis e António Galvão mais
compreensivos. Este tema sobre a perspectiva nacional do épico magalhânico é tratado
de uma forma interessante e abrangente na comunicação de António Alberto de
Andrade “Sentimentos de Honra e Direitos de Justiça na Viagem de Fernão de
Magalhães”, proferida no Colóquio Luso-Espanhol de 1973 sobre a Viagem de
Fernão de Magalhães e a Questão de Molucas, editado em forma de atas no volume
homônimo.
Pigafetta descobre-se cronista da expedição e descobre
a antropologia quando a Armada chega ao Brasil e pela primeira vez o italiano
contata o “outro”. Antes, pouco aconteceu que despertasse a atenção do
italiano. Mas na baía de Guanabara o mundo indígena torna-se o alvo das
atenções de Pigafetta, que, de uma forma caricata, descreve tudo o que lhe
passa à frente do olhar: o tipo de alimentos, a forma de vestir, a estrutura
familiar, a religião (ou melhor, a falta dela) e os libertinos hábitos sexuais
dos Tamoios, os habitantes originais do litoral carioca.
É um mundo novo, este que Pigafetta descreve, e como
tal tudo é possível, tudo é provável. Espírito crítico, ceticismo, método
científico e observação direta são ferramentas dispensáveis na bagagem do
italiano: ou porque ainda não foram inventadas ou porque não se enquadram com a
liberdade de imaginação que a Europa usufrui sobre tudo o que não conhece. Da
mesma forma que agora, na costa do Brasil, Pigafetta nos dá uma improvável
explicação para a origem do canibalismo, mais tarde, ao largo de Timor, nos
descreverá ainda mais improváveis pássaros com asas tão largas que conseguem
transportar elefantes, e homens c
om orelhas tão grandes que dormem cobertos por
elas. Mas esses pormenores nada diminuem a importância de Pigafetta para a
verdadeira história da primeira viagem à volta do mundo. Sem ele, os fatos
teriam sido adulterados para proteger desertores, amotinados, traidores e
cobardes. E o nome de Fernão de Magalhães teria hoje nada mais que uma pequena
e obscura entrada em algumas enciclopédias especializadas. Mas Pigafetta
garantiu o lugar devido na História ao seu capitão e desmascarou os que o
traíram.
Por enquanto, contentemo-nos em sonhar com Paraty e com toda a costa do sul do Brasil vista do largo, vista a bordo. E admiremos os poucos que sem saber dar um nó e içar uma vela souberam içar-se a bordo da maior expedição aos limites do mundo, e descrevê-lo com pasmo, credulidade, entusiasmo e paixão.