Pela janela entra o som do amola-tesouras, um som de gaita de boca que me recorda a infância.
A cidade antiga, com mulheres que apregoam fava-rica (uma sopa que era vendida
nas ruas de Lisboa) nas esquinas e vendedores do folhetim da “Rosa do Adro”, uma novela de cordel
contrabandeada nas traseiras.
Recordo o desenho da cara da Rosa do Adro, esboçado a lápis. Nunca descobri o que significava isto, Rosa do Adro. Nem idade do entendimento devia ter quando estas coisas existiam. Nasci nos anos 50. Década prodigiosa em que as pessoas, no rescaldo de duas guerras mundiais, descobriam a torradeira e o frigorífico, o DDT e a vacina da poliomielite.
Em breve os anos 60 tomariam conta da imaginação,
com a Swinging London eos Beatles,
o rock e os movimentos sociais, os hippies e as drogas. Nunca mais nada seria
como era nos anos 50, em que os homens eram os chefes da família, usavam bigode
e gravata, guiavam o carro (as mulheres não tinham carta) e iam para o emprego
todas as manhãs para sustentar o ‘lar’. Era um mundo admiravelmente ordenado
segundo a convenção, bafejado pelo bem-estar e a expansão econômica, a paz e a
primeira revolução tecnológica (a televisão, a batedeira, o aspirador). Os
códigos de honra eram apertados e as pessoas davam a palavra. Os mais pobres
compravam açúcar amarelo e sapatos a prestações e os remediados compravam a
primeira aparelhagem com som estereofônico — “this is stereo sound”, dizia um homem em basso profondo no LP de
demonstração. E o primeiro eletrodoméstico. Compravam e davam a palavra de
honra de que pagavam a dívida.
Muitos dos contratos de bairro entre o comerciante e o cliente começavam pela palavra de honra e um aperto de mão. As mãos tinham a sua importância nos anos 50. Não só porque se faziam muitas coisas com as mãos; também porque as pessoas que faziam coisas com as mãos ainda não tinham começado a ser desrespeitadas e substituídas por máquinas.
Os homens cuidavam do jardim, manejavam pincéis e
tintas, consertavam coisas elétricas, subiam ao telhado e sabiam de
canalizações. As tarefas não eram delegadas, eram distribuídas. Tudo se
consertava: uma vareta de guarda-chuva,
um rádio fanhoso, uma mesa manca, uma fechadura romba, uma persiana encalhada.
Os rapazes ajudavam os pais (e a garagem era um momento iniciativo) e as
raparigas ajudavam as mães na casa e cozinha. Os sapatos levavam meias-solas e
ninguém deitava nada fora, nem ricos nem pobres. Deitar fora era um sinal de
má-criação e desperdício. Os novos-ricos
de pele descartável ainda não tinham nascido. O dinheiro era velho ou não
era. As pessoas eram bem-educadas e ensinavam os mais novos a não desrespeitar
os mais velhos. Não existiam lares de terceira idade. Nem creches. Não falo
desse tempo como de um tempo ideal, meia dúzia de coisas dos anos 50
necessitavam dessa introdução à modernidade que se chama igualdade dos direitos
civis. Eu não queria ficar pelos lavores femininos nem pela prepotência do
velho código do Visconde de Seabra, em que as mulheres deviam obediência como
animais domésticos. Andamos um longo caminho. O problema é que destruímos e
substituímos tudo o que estava para trás e algumas das coisas que destruímos
precisamos delas. Sentido de honra e de decência. Respeito pela duração.
Tudo isto me veio à cabeça quando fui ver esse
filme bem escrito e inteligente que é “Gran
Torino”, de Clint Eastwood (e a América de Eastwood dava um livro). O filme
não é sobre violência urbana nem tolerância nem racismo nem nenhum dos temas
modernosos. O filme é sobre os anos 50 e o que deles sobra. Sobre um modelo de
sociedade em que a pessoas eram responsáveis por si e não dependiam dos outros
nem do Estado. Em que não precisavam de ser salvas e conviviam com os seus
erros e fracassos sem desculpas. A vitimologia ainda não tinha sido inventada.
Muito menos o reality show e a venda da dignidade. Nem os antidepressivos para
curar a mania das compras ou do sexo. Do the right thing. Faz a coisa certa.
Andamos um longo caminho. E agora, que perdemos tantas coisas, talvez fosse bom
recuperar algumas. Respeitar mais as concretas mãos e menos o dinheiro
abstrato. Deitar menos coisas fora. Consertar outras. Respeitar o planeta e a
rua, deixando de usá-los como lixeira à espera que o Estado venha atrás com o
aspirador. Poupar os carros. Comprar menos tecnologias que nos despersonalizam
e nos tornam twittering pardais afogados em pios irrelevantes. Escrever com a mão. Ler um livro com
páginas de papel. Mexer na terra. Cozinhar com tachos e com colheres de pau. E
contratar a melancolia do amola-tesouras para nos afiar as navalhas. Vamos precisar delas.