O Cachorro e o Dono

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Volta e meia recebo mensagens de gente que recém adquiriu um amigo cão. Normalmente quem me escreve o faz porque adquiriu um lhasa apso e está enfrentando o processo de adaptação. Cheiros, xixis, cocôs, coisas roídas. Enfim, é como receber um hóspede que, além de não falar a nossa língua, desconhece nossos hábitos e não acha que exista absolutamente nada de errado em fazer xixi ou coco, os dois até, bem no meio do tapete novinho da sala. E quando, à beira da histeria, reclamamos disso com nosso hóspede, este último nos olha com cara de paisagem, sem atinar com a razão de tanto barulho, e parece até nos dizer: — Afinal, é só um cocô ou um xixi, não é? Todo mundo faz isso! Você também não faz?

O Cachorro e o Dono

Pequeno ensaio sobre adaptação

Exatamente como outras coisas da vida, o cachorro aparece na nossa mais ou menos do mesmo jeito que uma grande paixão. A gente simplesmente não resiste àquela encantadora bola de pelos que sacode um pompom, nos encara e simplesmente sorri... — Bem, a gente pode jurar que eles sorriem para nós, sim! — Ou quando, sem saber direito o porquê, trazemos para dento de casa aquele bichinho carente achado na rua, que certamente morreria se não recebesse ajuda. São inúmeras as razões pelas quais a gente acaba com um cachorro em nossas vidas, mas parece que a coisa fica mais séria quando nos damos conta de que ele está, afinal, dentro de nossa casa. Daí bate a insegurança. — E agora? O que é que eu faço? —, nos perguntamos diante de um cocô mole e fedorento bem em cima do tapete novo. E eles? Ah, com certeza olham para a gente enquanto abanam o rabinho peludo onde existe alguma coisa grudada. — Ai! Que nojo! — Sim, a paixão é grande, mas o relacionamento pode ser cheio de conflitos.

Bom, vamos conversar. Ele não é exatamente um intruso. Foi uma escolha sua. E ele talvez nem tenha sido consultado sobre para onde iria ou com quem. A questão é que, sendo um cachorro, comprado ou adotado, você pode estar certa de que será amado ou amada por ele, com uma fidelidade profunda e uma lealdade acima de qualquer suspeita. Sim, ao contrário do que se diz por aí, o amor pode ser comprado, com certeza. Você compra o cachorro, e ele ama você. Simples assim. Portanto, considere isso. Você não vai desperdiçar seu coração, não. Acredito que nós, os humanos, é que nem sempre somos dignos de nossos cachorros, mas isso já é excesso de filosofia por aqui. O que quero deixar claro desde logo é que, nesses tempos em que se raciocina sempre em termos de investimento e retorno, apostar num cachorro é lucro certo. Com certeza ele vai ter você em altíssima conta e vai amá-lo mais do que você merece. Eles são sempre generosos nisso. Então, em termos de afetividade, esse relacionamento tem tudo para dar certo.

Mas, — dirá você —, o cocô continua na sala. Sim, o cocô, o xixi, o cheiro estranho que você sente quando, chegando da rua, abre a porta da casa. E as coisas fora de lugar que você encontra quando volta para lá. Impossível não se lembrar da velha frase “eu era feliz e não sabia”! Sim, vamos falar sério. Tem horas que a gente se arrepende. E não se culpe por isso. E digo: sou a favor do direito de arrependimento, mas deixo claro aqui que esta é uma posição minha, e muito pessoal. Se você não suporta conviver com ele, reverta a situação. Creio que há pessoas que não deveriam nunca ter um cachorro, porque disso resulta uma verdadeira tragédia para a vida do bicho. Sabe aquela gente que curte casas limpas, quase assépticas, onde tudo fica sempre no lugar, onde as coisas brilham e nada pode ser alterado no cenário sem provocar uma crise? Pois é. Justamente. Gente assim não deve ter um cachorro, por mais “decorativa” que a raça dele possa ser. Não! O belo e artificial cenário que o decorador pensou para o seu “lar” pode até ser valorizado por um lindo cachorro bem comportado fazendo pose em cima de uma almofada, mas ele é de verdade. Não é de pelúcia. Então, creio que, se você se enquadra nessa categoria de pessoas, a adaptação se torna muito difícil, e alguém vai ter de pagar um preço muito alto: ou você vai ter de desistir da compulsão por limpeza, e aprender a conviver com o cocô, ou o cachorro vai ter de ser condicionado a se ajustar a um contexto de rigidez que, sinceramente, ninguém merece, muito menos o coitado do bicho!

 

A propósito, nunca consegui condicionar meu cachorro a coisa nenhuma. Quando Alex veio para cá, procurei me adaptar às vontades e aos caprichos dele. Ficou livre para usar a casa toda como quisesse. Não lhe impus limite algum. Não sei se fiz bem ou mal. Só sei que ele é um ser tão tranquilo que chega a ser desconcertante. É completamente zen. Dorme a maior parte do tempo, não curte sair, pois gosta da casa. Nunca roeu ou destruiu nada, exceto um ou outro brinquedo que ele tem como propriedade dele. Ele simplesmente elegeu um lugar que ficou sendo o seu banheiro. Ali ele deposita o seu precioso cocô regularmente: embaixo de uma mesinha que fica na sala. É só pegar e despachar. Sim, a casa foi um dia toda acarpetada, mas agora não é mais. Portanto, o xixi não é mais um problema, até porque ele urina apenas em certos lugares da casa. Papel absorvente resolve. Umas gotas de água oxigenada dez volumes retiram todo o odor. Uma coisa interessante. Cachorros da raça lhasa apso nunca sujam o lugar onde dormem. Portanto, no quarto que ele escolheu para dormir nunca faz nem xixi nem cocô. Mas pode fazer isso em cima de nossas camas, sim, quando se sente ofendido ou aborrecido com alguma coisa. Uma espécie de protesto, de desaforo, porque adaptação, afinal, é um processo que envolve reciprocidade. Além disso, mudamos nós, e muda o cachorro com o passar dos anos, de sorte que o tempo influi muito, mas não apara todas as arestas. Sempre podem surgir novos problemas a enfrentar.

 

O início do processo de adaptação é conturbado, mas, como as melancias na carroceria do caminhão, a coisa se ajusta com o movimento e com o tempo que passa. Quando são filhotinhos tudo é alegria também. O mundo é uma descoberta, as coisas, as pessoas. Passado o período da falta de imunidade, que deve ser suprida com as vacinas, você já vai poder passear com ele. E se você é do tipo fechado que não curte conversar com ninguém quando sai à rua, prepare-se para mudar. Nem preciso dizer que os “cachorreiros” se conhecem, se curtem e até viram tribo no bairro. Além disso, é impossível amar um cachorro sem amar também os seus semelhantes. Aos poucos, você vai ter de acostumá-lo ao uso da coleira. Sim. Não descuide disso. E que seja do tipo com “peiteira”, que permita que você, em caso de perigo, possa erguer seu amigo do chão sem machucá-lo. E não se esqueça, por favor, de sempre levar sacos plásticos. Aprenda a juntar, a ensacar e a despachar o cocô no lugar adequado. É claro que muita gente não junta, mas isso é outra coisa. Problema deles, não seu. Enfim, ele cresce um pouquinho, e a primeira fase de adaptação se transforma numa rotina que vai envolver ajustes que se tornam cada vez mais fáceis. Você já se acostumou com o cheirinho dele. — Afinal, não é tão ruim assim. — Você aprendeu também a limpar orelhas e, se tirou na sorte grande e acabou dono de um lhasa apso, aprendeu também a dar muita atenção àqueles olhos enormes, cheios de doçura, mas que estão expostos demais e devem ser limpos com muito cuidado não apenas porque a raça apresenta tendência a ter doenças crônicas nesses órgãos, mas também porque as lágrimas do lhasa apso apresentam um odor muito forte. Caso não sejam limpas, escurecem e endurecem, prejudicando o pelo inclusive. Ah! Você também já aprendeu que precisa, a cada três meses, dar a ele um vermífugo. E uma vez por ano tratar das vacinas. Um bom veterinário vai saber como orientar você sobre isso. Tenha um veterinário de confiança, e essa palavra diz tudo. E gosto de dizer que confiança é algo que não admite abuso.

 

Os acessórios, temos de falar disso também. As rações, as roupinhas, os enfeites! Prepare-se para ficar sem saber o que fazer, ou melhor, o que comprar. É que as coisas mudaram muito nessas últimas duas décadas. Os assim chamados “pets” não são mais o que eram no passado: apenas nossos queridos bichinhos. Eles se transformaram em produtos de consumo e, como tais, se tornaram objeto do desejo. Não vou chegar ao extremo de dizer que o “imperialismo” capitalizou os cachorros, mas que capitalizou os produtos para pets, ah, capitalizou, sim. Nem preciso citar aquelas bobagens tão dispendiosas quanto inúteis que passaram a ser oferecidas no mercado como coisas que você “deve” comprar, sob pena de ser considerado relapso para com seu cachorro. Nesse campo, você só vai ter uma saída: ler e aprender a partir de fontes confiáveis. Tenha bom senso. A publicidade tem como objetivo primordial vender um produto, e o caminho mais certo para isso é convencer você de que precisa daquilo. Pior: no caso, convencer você de que o seu cachorro precisa daquilo! Se você por acaso não compra, é sinal de que não o ama. Tenha paciência! Isso não é uma lógica. Isso é quase uma extorsão, um abuso de confiança que vulnera nossa fragilidade. Com o tempo, você vai descobrir, como eu, que seu cachorro não morre se comer aquela ração que se compra em supermercado. Vai descobrir também que, sim, pode enfeitá-lo e perfumá-lo sem que isso custe uma fortuna. O mesmo vale para roupinhas, acessórios e serviços. Como tudo na vida, você acaba aprendendo, seja pelo amor, seja pela dor. Passado o primeiro ano, para a maioria que adquiriu um filhote, seu amigo vai atingir o porte e o peso médios da raça, se for o caso de ele ser um bichinho de grife.

Mas, como tudo na vida é incerto, pode ser que você tenha de enfrentar alguma coisa para a qual não estava preparado. Eu tive. Pouco depois de Alex completar dois anos de vida ele passou a ter convulsões. Foi desesperador. Ele caia ora da cama ora do sofá. Os membros ficavam rígidos. Ele contorcia o corpo enquanto babava, urinava e defecava. Dava para perceber que ficava consciente durante as crises, porque olhava para a gente, como querendo entender o que acontecia com ele. Foi um longo caminho até descobrir que se tratava de epilepsia. — Chega-se a esse diagnóstico só pelo descarte de outras etiologias: tumor, trauma, alguns tipos de infecção por agentes biológicos. Não se encontrando uma causa determinada que possa ser afastada, então, chega-se ao diagnóstico de epilepsia, que tem tratamento, sim. Daí começa o segundo longo caminho a percorrer: ajustar a dose do Gardenal até conseguir que as crises cessem, o que só acontece depois que se tornam progressivamente mais fracas. O resultado é um impacto em nossa rotina. Porque o Gardenal deve ser ministrado a cada 12 horas. E o tratamento dura para sempre. Bem, Alex vai completar 12 anos agora em setembro, dia 26. O remédio já é rotina. A dose hoje é pequena e ele não sofreu por isso nenhum efeito colateral até hoje. Como o sofrimento, a angústia e falta de informação foram grandes, acabei publicando alguma coisa sobre a experiência vivida, num blog que criei para ele. O resultado é que até hoje recebo e-mails e postagens de pessoas que enfrentam esse mesmo problema. Bem, faz parte. Não muda em nada nosso amor por eles. Acho que fica até maior.

 

Há casos curiosos também. Quando Billy, um shih tzu, passou a fazer parte da família de minha querida amiga Vera, a coisa mudou muito. Embora ele fosse bastante afetivo nos primeiros meses, tornou-se feroz com o tempo. Mesmo com tratamento psicológico, — porque hoje existem psicólogos de cachorro —, Billy se mantém recalcitrante e desconfiado em relação aos seres humanos em geral e, em particular, daqueles que cuja pretensão é a de lhe obrigar a tomar banho ou ser tosado. Estes ele costuma atacar e morder indiscriminadamente. As petshops costumam não aceitá-lo mais depois de um ou dois banhos. Para ser tosado, precisa de sedação. Segundo Vera, a única pessoa que ele elegeu para objeto de seu amor incondicional é Felipe, o marido dela, que retribui a Billy um amor não menos incondicional. O resto da família Billy encara conforme seu humor, que é bem variável. Houve também o curioso caso do Doguinho, o bulldog inglês de um amigo que roeu a mobília da casa e marco das portas. Quando, porém, demoliu um armário, bebeu todo o estoque de leite que havia ali armazenado e teve uma violenta diarreia que se espalhou pela casa toda, a esposa de meu amigo foi categórica: ou eu, ou este cachorro. É claro que meu amigo e o cachorro vivem bem até hoje. E houve o Catatau. Este eu não conheci, mas soube que, apesar do pequeno porte, — era um basset  —, era metido a brigão. Esperto e curioso, Catatau aprendeu a andar de barco com Rogério. Mantinha-se em pé, na proa, como um verdadeiro marinheiro. Volta e meia se metia com lagartos de papo amarelo e até com ouriços, comuns no interior de São Paulo, na zona da Mata Atlântica. A propósito, dava um trabalhão extrair dele os dolorosos espinhos de ouriço que se lhe entravam pelo focinho depois dessas disputas territoriais. O caso mais sério, porém, ocorreu quando ele conseguiu entrar na casa de um vizinho e atacar um fila brasileiro. Catatau, ao que parece, compensou a evidente desproporção de tamanho atacando o outro “por baixo”. Simplesmente mordeu o saco escrotal do fila. Incrível é que o pequeno Catatau sobreviveu à façanha, apesar de muito machucado.  E parece que as consequências do feito, ao menos as de ordem moral, foram bem piores para o Fila. Viram? Nada como um cachorro para nos proporcionar grandes emoções.

Finalmente, os outros. Acho que a mudança mais radical que acontece em nossa vida depois que um cachorro passa a fazer parte dela é o impacto que isso causa em relação aos outros. Comigo ao menos foi assim. O mundo passou a se dividir entre quem tem cachorros e o resto. Ou seja, gosto mais de gente que tem bichos e convive com eles do que de gente que não os têm, porque é incapaz de aturar uma sujeirinha, um cheiro estranho ou um transtorno qualquer. Nem preciso dizer o que acontece com quem, chegando aqui em casa, tenha o desplante de reclamar de odores, de pelos, ou da festa que Alex faz ao receber qualquer um. Além disso, ele escolhe, — naturalmente em detrimento do visitante —, o lugar do sofá onde quer sentar ou deitar. Alex festeja todo mundo. Ao contrário da dona, ele adora gente. Parece confiar em qualquer um, e seu entusiasmo pelas pessoas inclui carinhos, cuja reciprocidade — gosto de explicar — é de bom-tom. Noblesse oblige. Ele gosta de colo, de mimos, e prodigaliza beijos em quem quer que entre aqui em casa, com raríssimas exceções. Definitivamente não vou confinar meu cachorro numa peça para satisfazer aos caprichos ou às idiossincrasias de quem quer que seja. E pobre da visita que não agrade o meu cachorro! Exagero? Nada disso. E se você, por acaso, também tem um bichinho em sua vida, sabe então que tudo isso é mesmo bem assim. Como eu disse no início, uma adaptação recíproca: sua, do seu cachorro e depois dos outros. Azar deles!


Autor: Maristela Bleggi Tomasini
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