Porque cidades são únicas, por mais que se assemelhem.
Únicas, em toda extensão desse termo. Porque é no que se diferenciam que reside
muito justamente o ethos que elas, ― cada qual a seu modo ―, conferem a seus
cidadãos citadinos. Por isso, falar de cidades é falar de suas idiossincrasias.
Assim o nevoeiro místico de Paranapiacaba ou o doce balanço das bandeirinhas em
festa nas ruas de Mogi das Cruzes, para sempre louvadas pelo pincel de Volpi.
Nossas cidades nos identificam talvez mais ainda que as nações. Todavia, essa maior ou menor importância conferida às cidades tem parte com a história às vezes; outras, com a memória. Algumas a história, a grande história, perpetuou. Outras têm de seu apenas a memória e o culto citadino e cotidiano das vidas nelas vividas por sua gente. Por isso talvez se possa bem dizer que cidades vivem entre a memória e a história, e que saber um pouco sobre isso pode ter lá a sua importância.
E tem.
Especialmente nesse tempo em que vivemos, nesse quando presente para nós, pacatos cidadãos, para quem a grande história não mais importa tanto quanto outrora, naqueles tempos em que não éramos nem poderíamos ser dela os protagonistas. É que o homem comum tem vencido essa luta e, por memoráveis caminhos, vem adquirindo lá o seu protagonismo, que só faz aumentar. Verdade que isso se deve bem mais ao fato de ele movimentar o mercado do que ao reconhecimento de sua cidadania e dignidade como pessoa humana no mundo. Todavia, aqui importa dizer que o comum dos homens tornou-se protagonista da história há pouco mais de um século para cá. Desde então o grande vem cedendo lugar ao pequeno, e isso se fez marcar por um retorno quase que obsessivo à memória.
Lembrar importa cada vez mais.
Mas como dar à história o que é da história e à memória o
que é dela ou, na verdade, tão nosso afinal? Porque frequentemente se vê uma
disputa entre memória e história, em que pese sejam ambas muito diferentes. Há
uma forma clara de se perceber essa diferença. A história é de ordem cognitiva
e tem o tempo como sua matéria prima. É inteligível na medida em que podemos
compreender a passagem do tempo na inexorável separação entre o ontem e o hoje.
Ela, história, consiste em um saber ou, no mínimo, tem pretensões a tanto, ao
buscar uma universalidade propícia a generalizações, em que pese o fato de
eventos passados não poderem ser replicados. Comprometida com a verdade, se
esta última se torna inapreensível ou quase metafísica, ela, história, não se
contenta com menos do que a verossimilhança. Já a memória é de ordem
ideológica, portanto, é franca e assumidamente seletiva. Sua matéria prima é a
emoção, e podemos compreender a memória à medida que seus apelos encontram
resposta na reciprocidade do outro em nós, na alteridade, portanto. Escolhe-se
o que se quer lembrar e o que se deseja esquecer. Na ordem do cotidiano de gente comum, a
memória se perde, caso não seja registrada de algum modo. Basta ver quantas
histórias contadas em cartas, quantos fatos gravados em agendas, quantos
segredos confidenciados a diários, fora rascunhos, anotações, cartões,
lembranças, convites, listas de compras. E isso apenas no âmbito privado da
memória, das pertinências que tem com o íntimo de cada um. Haveria ainda o dia
a dia sociabilizado nas práticas festivas, nas pequenas publicações, na imensa
pluralidade de construções que a imprensa permite, nas notícias perdidas em um
rodapé de página, nos convites para enterro, nas participações de noivados,
núpcias e nascimentos. Tantas coisas que aparecem no mundo, muitas insuspeitas
da importância que a corrida arquivística, todavia, só faz revelar. Tudo porque
esse tipo de documento tem merecido atribuição crescente de valor,
especialmente nas últimas décadas.
Mas como relacionar história e memória?
Tudo depende muito do que se busca encontrar. Quando a história se vale da memória, quando interroga um documento, um suporte memorável, tem por dever, em uma primeira abordagem, identificar o objeto, sua origem, seu tempo e as circunstâncias todas que cercaram o seu aparecimento no mundo. Portanto, diante de memórias, desde o seu suporte material até o seu conteúdo ideológico, tudo isso merece um exame cuidadoso da parte do historiador, que deve fazê-lo muito antes de tratar da história propriamente dita. Muitos poderão argumentar que também a memória se posiciona dessa forma, mas a resposta é que não, nem sempre. Sobre o operador de memórias essa regra não pesa de forma tão decisiva. Basta ver que é possível registrar memória de fatos míticos, e ainda de fatos nunca provados em termos históricos. Há museus de seres imaginários e mesmo de extraterrestres. Podem-se coletar lembranças de uma comunidade perpassada de mitos e lendas, onde sacis e boitatás ganham existência real. Tudo o que representa o ideário humano pode ser apropriado livremente pela memória. Não se trata, para o operador da memória, do valor informativo daquele registro, mas de seu potencial de representatividade imediato, compartilhável entre presentes, algo que também informa, naturalmente, mas em outra esfera do saber. Memória não é passado, mas um presente vivenciado na esfera das sensibilidades, dos sentires, das emoções. A memória prescinde de qualquer neutralidade.
Assim é que, quando se deseja operar na ordem das
memórias, quase nunca se busca o valor informativo real e generalizável, a
qualidade altamente verossímil de um dado documento, tanto do ponto de vista de
sua materialidade quando do ponto de vista de seu conteúdo ideológico, sempre
coerente, sempre relacionável ao tempo a que pertence quanto às circunstâncias
que cercaram o seu aparecimento no mundo. Esse mister pertence ao historiador,
que dele não se pode, aliás, não deve, se afastar. À memória, não é o dado
universal que interessa, e, não raramente,
o dado altamente verossímil que se extrai de um documento. O que orienta
e determina a construção da memória não é necessariamente a verdade, pois a
memória conforta bem a possibilidade de um uso político, por exemplo. Porque, a
ação de monumentalizar memórias, — memórias compostas, aliás,
predominantemente, de fragmentos, como podem ser aquelas pertinentes ao homem
comum —, é uma ação que congela versões quase sempre totalizantes e
totalizadoras. Escolhe-se aquilo que conforta a versão que se pretende
praticar. É o velho uso político do passado que descobre, muito facilmente, nos
fragmentos cotidianos, um material cuja maleabilidade é flagrante.
Todavia, o que se encontra de mais fascinante e valioso
no microuniverso da cotidianidade vivida por gente comum é que o registro
dessas vivências, seus suportes materiais tão variáveis e tão surpreendentes às
vezes, é aquilo que eles significam do ponto de vista das sensibilidades e das
sociabilidades. O historiador, por sua vez, pode neles encontrar sinais
altamente denunciadores do efeito que os grandes acontecimentos imprimem ou não
às pessoas comuns. A comprovação indireta do grau de repercussão de um fato
histórico em dado tempo e lugar. Um poder que pode ser usado em dupla via.
Porque, não raramente, esses pequenos fragmentos do comum podem, como
reagentes, desmentir grandes verdades, impactando momentaneamente um
acontecimento. Para tanto, seriam como que poções mágicas que fariam
desaparecer, com um simples abracadabra, o atributo de grandeza do herói ou a
vilania do criminoso. A memória tem esse
poder ainda que nem sempre perdurável. Vê-se isso constantemente. A força dos
potins, que já foi a ruína de muitas reputações, força esta consagrada pelas
velhas mexeriqueiras de antigamente, hoje se propaga em tempo real, revigorada
pelas redes sociais. E se volta, quase que naturalmente, contra tudo aquilo que
adquire notoriedade. Não é corriqueiro que baste alguém desfrutar de cinco
minutos de celebridade para sofrer, quase que instantaneamente, o bombardeio
das mídias? Aprofunda-se a memória no diz-que-diz, e a informação se fabrica
sob medida, assim como as memórias se ajustam e reajustam, ― retocadas ―, ao
compasso das disputas ideológicas que por aí tem lugar.
Uma sugestão para quem pretendesse visitar a cotidianidade citadina? Seria preciso relativizar o dado axiológico inerente a documentos pertinentes à esfera privada, íntima ou institucional. Porque se tratam quase sempre de valores que não residem apenas no que são esses documentos por si mesmos, isoladamente, mas da qualidade das informações que muitos deles oferecem, quando contextualizados, capazes, inclusive, de servir de indicadores face aos grandes acontecimentos a cuja sombra vive o comum dos homens. Não se deve crer no grande quando nele não se encontra o reflexo do pequeno. Essa máxima alquímica, que deve ser entendida em dupla via, indica que nada é tão simples. A carta do soldado escrita à namorada em tempos de guerra representa esta última muito mais intensamente do que o livro do historiador. O grandioso, como o absoluto, é opaco. No pequeno, porém, essa opacidade é varrida pela transparência e pela espontaneidade dos fragmentos que o comum dos homens deixa atrás de si, graças à memória esboçada pela poesia das conversas de calçadas, pelos sabores, cores e cheiros que traduzem tão fielmente o universo sensível de tudo o que a razão é incapaz de apreender.
Diante desse cenário, na consciência do pacato cidadão que habita a cidade e que por ela se movimenta por dias e dias, pouca diferença faz a relação entre emprego e renda, assim como em que mãos se concentram os meios de produção. A ele, certamente, na dimensão de sua humanidade, importam mais as ruas pelas quais deve passar, as lendas urbanas das quais ouviu falar, os hábitos que se fixam pelo ir e vir, as cores e os cheiros que sente, os lugares aonde vai trabalhar, divertir-se, rezar ou chorar.
Berçário e asilo dos homens, as cidades podem ter sua
história, tão certa quanto neutra na exata medida fornecida pelos números, mas
é por suas memórias que vai se diferenciar de tantas e tantas outras que também
a ela se assemelham na ordem das quantificações. O homem providencial e seu
destino histórico agonizam sob o descrédito de uma Providência desmentida pelas
estatísticas. Mas, em que pese anônimo, cada pequeno homem pode vir a ser um
pequeno príncipe, capaz de assimilar e de conferir sentidos a cada uma das
rosas que desabrocham nos jardins e praças de sua cidade.