A morte do homem moderno

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

É em vão que se busca o homem moderno. Ele morreu ao final do último século.De pagão na Antiguidade a obediente filho de Deus no Medievo, ele deu ouvidos um dia ao discurso de Descartes. Aos poucos, descobriu a razão, e assimilou um método que mudaria a face do mundo. Fez-se revolucionário ao depois, porque desconfiou do poder, desejou a liberdade e a igualdade.Modernizou-se, enfim. Mudou a face do mundo e a sua própria. A luz divina substituiu-se pela luz da razão e pela força da vontade.

A morte do homem moderno

O sobrenatural cedeu lugar ao natural. A natureza humana assumiu novo estatuto, inerente à ordem da vida, todavia, com plena consciência de ter consciência disso, capaz de abstrair e de valorar, capaz de dominar uma linguagem não apenas descritiva como ainda simbólica.

Por três séculos o homem construiu a modernidade.

Pouca coisa?

Não. Muita. Grande passo para uma humanidade que, por longo tempo, aceitou passivamente a tutela, se não de um deus, a de seus representantes divinos. A esse deus e seus representantes é que se deve o arcabouço de valores tradicionais que a razão, todavia, não desacreditou: antes os secularizou, esvaziando-os de sua antiga dimensão transcendente. Tais valores pretendiam representar uma ordem que se opunha ao caos, com a mesma polaridade com que o bem se oporia ao mal. Uma antítese, enfim. Porém sem a beleza daquela que o paganismo sacralizara com Apolo e Dionísio, divindades antes complementares que opostas. Velha antítese conservada em seu diapasão pragmático, que o medievo consagrou com acentuada polaridade, quando separou deus do diabo. Ordem contraposta à desordem, luz contraposta à escuridão. Eis que o bem e o mal viriam a protagonizar, por longo tempo, a divina comédia da existência. O poder temporal, visceralmente unido ao poder espiritual, é imposto em face dos homens como porta-voz do bem maior ao qual opor-se era anátema. O cristianismo, que herda do judaísmo seu fundamento teológico e arcabouço normativo, se sobrepõe ao paganismo. Não se negue, porém, o devido tributo a esse passado medieval que conferiu ao homem uma alma imortal e uma salvação individual: o ser é singular e as coletividades, por consequência, são aparentes e transitórias.

Refém de forças guerreiras, até então fantoche do destino, o homem moderno finalmente encontrou, na razão, ainda que tênue, o fio condutor que livremente escolheu para conduzir seu destino. Reaprendeu-se como homem. Redimensionou-se no mundo e na história, política e filosoficamente, ao longo de três séculos, descobrindo a si mesmo e à realidade, esfinge à qual ele interroga em lugar de a ela conformar-se.  Individualista, sim; todavia, à medida que se desprende de velhas pertinências comunitárias, o homem moderno é também massa, quando se espelha e se identifica com os grandes movimentos que vão emergir na história. Em pleno século XIX, ele substitui a fé em deus pela fé na ciência, ― geral e totalizadora também ela ―, e toma a racionalidade como guia superior, único capaz de lhe fornecer um modelo de mundo, cuja rigidez, pressuposta por convicção moral, desconfia da diversidade, elemento visto como ameaçador ao ideal de unidade histórica: um passado que explicasse o presente e preparasse o futuro. Nesse contexto, as singularidades individuais arriscam contaminar corpus fechados de ideias, o que explicaria a tendência a um pensamento único que só se acentuará ao longo do tempo.

A modernidade racional não era, enfim, sem paradoxos. E de tanto duvidar daquilo que os sentidos lhe entregavam, o homem moderno, talvez por força do próprio método que tanto lhe rendera em termos de ordem e de progresso, começou a duvidar da razão. Como resultado disso, a verdade, enfim, sucumbiu, descoberta não em sua nudez, mas em sua absoluta superficialidade. Porque se o homem moderno pretendeu a verdade, o homem pós-moderno prescinde dela.  A verdade banaliza-se: cada um tem a sua, e nenhuma prevalece sobre a outra. Isso não é sem consequência, porque tal sorte de ruptura se estende à história. Passado, presente e futuro coexistem no aqui e agora, eternamente.

Para onde foi o homem moderno que se movia pelo mundo impulsionado pela vontade dirigida pela razão? Que punha sua fé no progresso, que ora a técnica, ora a ciência lhe trariam, graças a Deus. Cada vez menos visível, ele talvez ainda se esforce para protagonizar, ao menos, aqui e ali, os valores tradicionais dos quais se acredita herdeiro. Pouco a pouco, o dono de si sucumbe aos mecanismos de dominação, que falseiam a liberdade substituindo-a por um ideal meramente formal. Neste processo, entre a coletivização comunista e a capitalização dos desejos que cria cada vez mais e maiores necessidades, direitos são proclamados à revelia da possibilidade de seu pleno exercício. Cada vez mais as gerações se deparam com mundos profundamente diferentes daqueles que habitaram seus pais. O passado é desqualificado na medida em que a existência se acelera, de sorte que a felicidade se aproxima cada vez mais da angústia, ambas despontando, porém, espetacularmente. Porque efêmero, virtualmente efêmero, é o caráter de tudo quanto hoje nos cerca.

Decepcionado pelas ideologias mobilizadoras, liberais, sociais ou nacionais que trouxeram guerras e massacres com vistas a um universalismo utópico, homem moderno assistiu a modernidade esvaziar-se de sentidos, mesmo daqueles que só a linguagem pode conferir ao mundo, por vezes tão ricamente, aliás. É que mesmo a linguagem mais nobre foi assimilada àquela dos anúncios publicitários. Mediocrizou-se. Homens e produtos disputam o mercado, cada vez mais violentamente, obedientes ao coro formado pelas vozes de multidões anônimas, ora pacíficas, ora hostis, ao sabor de suas inclinações momentâneas.

Até que a vontade do homem se tornasse a vontade do nada.


Nihil, o nada que dissolve a subjetividade, núcleo do indivíduo que agora se descobre, contudo, múltiplo, projetado nas facetas multiplicadoras das redes. No nada imagético, espelho narcísico, apaixona-se por um eu que não é senão eco de frases feitas. Descobre-se prosélito de uma religião cujo corpo doutrinal foi substituído por slogans. Ele discursa, ele grita, ele vocifera ora Paz, ora Justiça, podendo escolher, ― #malmequer, #bem-me-quer ― a cada manhã, uma nova causa pela qual lutar no evento que terá lugar logo mais. As regras devem ceder diante das exceções. O denuncismo substituiu-se à capacidade crítica. Nada mais se debate, e os espíritos empobrecem. A liberdade de escolha resta profundamente comprometida. É no nada que este homem pós-moderno deposita sua liberdade. Pensa-se múltiplo, quando não está senão dividido, dissolvido na massa, nos movimentos, morto em sua subjetividade à qual renúncia, hipnotizado por paradigmas estéticos e culturais fragmentados, onde é possível acreditar um pseudo passado e pseudo futuro, velho sonho das bruxas que o medievo estigmatizara no caos que se opunha à Ordem Divina.

Releio-me. Constato não sem surpresa o quanto minha própria percepção das coisas precisa fragmentar-se, ela também, para melhor descrever o que percebo à minha volta. E ocorre-me o quanto de nostalgia encontro em minhas palavras, fruto contagioso talvez dos sonhos vislumbrados no olhar de alguns dos que me cercam. Desejaríamos ressuscitar o homem moderno, cuja carne já se desprende dos ossos?  Mac Benac! Para tanto seria preciso recriar ou despertar alguém ingenuamente capaz de acreditar em verdades universais. Fugindo às decepções e aos desenganos, ele escolhe sonhar com um destino inspirado em ideais da fé, espelho divino da Lei e da Ordem. Seus sentidos despertam, ao som mágico da flauta que o encanta. O futuro, do fundo do abismo, lhe sorri aqui e agora, reflexo insólito da ilusão que encarna a Esperança, brilhando escondida entre todos os males do mundo.

 


Autor: Maristela Bleggi Tomasini
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