o haiti é aqui?

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Em carta endereçada a um grupo de intelectuais, o professor da UFBA,Jorge Nóvoa, responde , comenta aspectos do socialismo, fala sobre democracia,revolução,liberdades individuais, tortura e a relação entre Cuba, Estados Unidos e Guantánamo

o haiti é aqui?

Jorge Nóvoa, entre outras atividades intelectuais, éDoutor pela Universidade de Paris 7 - Denis Diderot, 08 de março de 1985; Pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) 1998-1999; Professor Convidado da Universidade de Paris III - Sorbonne Nouvelle (Departamento de Cinema e Audiovisual - 2003;

“Existe algum inferno maior do que Guantánamo? Ou o Haiti é aqui?

Bom dia amigos,

Gostei muito que vocês respondessem ao meu e-mail que teve apenas o objetivo de saudar as pessoas e de incitá-las a refletirem e a se posicionarem sobre um escândalo internacional que parece passar despercebido. Obrigado pela atenção de suas respostas e pela precisão sobre Guantánamo. Eu conhecia a origem histórica desse “cancro”, muito embora pouca gente tenha conhecimento.  O modo como coloquei a questão foi para contemplar a fórmula de um orientando meu da Pós.  Na verdade somos tão carentes de espaços como este que estamos realizando agora...! Eles não substituem nem livros, nem artigos, nem mesmo os Congressos e reuniões diversas. Não sei por que isto não ocorre mais vezes.

Todavia, a questão da relação do governo cubano e do povo cubano com essa base militar, desde o início da Revolução Cubana, colocou um problema fundamental: é possível o socialismo numa pequena ilha? Granados também fez uma Revolução e muito antes do acordo espano-estadonidense que rende a Cuba os miseráveis 5 mil dólares aos quais vocês se referem, uma revolução foi feita pelo negros haitianos no início do século XIX que terminou fracassando. Por quê? Vários foram os motivos, mas com certeza o isolamento pesou substantivamente.

Mas uma série de experiências se saldou por fracassos semelhantes, da Comuna de Paris à Revolução de 1917, à Revolução Espanhola, e à chinesa também. Isto coloca o problema, portanto, não da incapacidade de um povo de realizar uma revolução, mas de afirmá-la e desenvolvê-la e expandí-la. Sem dúvida que os problemas são complexos e não permitem esquemas conclusivos, mas não há como negar que este aspecto da revolução permanente tal qual Marx a prognosticou – e Trotsky desenvolveu como pôde até as últimas conseqüências políticas - é uma aquisição central para a luta pelo socialismo no século XXI. Não é possível a realização do socialismo num só país. Que diríamos de uma pequena ilha como Cuba?  Além disso, se trata de uma verdadeira aquisição para a interpretação da própria história e de seus processos sociais.  Assim, em que pese todas as responsabilidades dos dirigentes e frações dirigentes da Revolução Espanhola, por exemplo, no que concerne a suas escolhas táticas e estratégicas e às suas alianças políticas concretas, o isolamento da revolução na Espanha, ajuda decisivamente a explicar os seus fracassos.  Com certeza eles se explicam porque são ao mesmo tempo conseqüências das políticas (táticas e estratégicas) dos  dirigentes da II República. Poucos compreenderam o porquê da sorte da Revolução Russa estar ligada em grande medida à vitória ou ao fracasso da Revolução Alemã, Húngara, etc. Isto pesou de modo fundamental na explicação do fato, por exemplo, de Trotsky não ter se mobilizado para a realização de um Golpe de Estado em 1924, 25 e 26. Claro que as lutas internas das massas na URSS também pesaram na sua avaliação, além da compreensão definitiva do fato de que os golpes não cumprem os objetivos da revolução. Não sei até que ponto Che Guevara teve consciência disto, mas é a mesma dialética que explica sua saída de Cuba. Estamos discutindo assim a dialética da revolução e da contra-revolução no interior e no exterior dos espaços que realizaram revoluções. Creio, entretanto, que sim, que Che estava bastante consciente desta dialética.

Sem dúvida, se a democracia não concorda com tortura, Guantánamos nem goulags de nenhuma espécie, muito menos o socialismo. Tudo bem: ele não existe na face da terra. Mas este é o ponto de partida da reflexão e não o de chegada. Socialismos - tenham eles as faces que tenham, não brotarão como cogumelos, por geração espontânea. É preciso, por conseguinte, que os setores que representam o aspecto subjetivo dessa empreitada histórica queiram que eles tenham determinadas faces e não outras para que eles se realizem com tais e tais características e não outras. Ou seja: o nosso ponto de partida para a análise do “socialismo” cubano não pode ser apenas a inexistência de socialismos, nem de democracia plena no mundo. 

Diferentemente de vocês eu não tenho dúvida de que nos países mais “democráticos” (Noruega, Finlândia, Dinamarca, Suécia, França, Inglaterra, Espanha) não existe verdadeira democracia. Existem torturas e existem censuras e as privatizações são um aspecto da política neoliberal que em si mesma já é perversa. Ou vocês acreditam que os interrogatórios policiais nesses países se realizam apenas pela persuasão e pela a indução? As conquistas democráticas e sociais que os movimentos sociais diversos realizaram e realizam concessões arrancadas a uma mão são tomadas pela outra do capital. E se as bases materiais e sociais de classes estabelecidas historicamente por este subsistem sem dúvida que elas permitem ao fascismo sobreviver de modo proto ou ordinário, aparecendo com toda a sua face em políticas específicas, sem que seja necessário aos seus dirigentes aparecerem como protagonistas. A natureza política fascista de muitos aspectos da política neoliberal se acha no registro do DNA do capital e desde sua acumulação primitiva, histórica e só desaparecerá quando ele desaparecer, se ele desaparecer sem a humanidade. Pois é, como diz Garcia Marques, se o socialismo na nossa infância era uma necessidade, hoje ele é uma questão de vida ou morte, e isto para a humanidade inteira.

É verdade que em países como os nossos esta realidade parece mais feia, pelas favelas, pelo desemprego e pela miséria. Mas se tratam de diferenças de quantidade. Mas se olharmos bem os EUA, suas eleições, seu índice populacional que se encontra abaixo do limite de pobreza é assustador. E Bush que foi eleito para realizar a política que está realizando, não foi eleito livremente. As eleições não foram apenas fraudadas. Foram também “encurraladas” como no Brasil, por exemplo. Em certos lugares escolhidos previamente, bandos armados, semelhantes às SS nazistas (sem farda) vasculharam os redutos “democráticos” e que votariam no candidato democrático e ameaçaram de mortes seus militantes. Eu conheço gente que sofreu de tal experiência.  Dos espancamentos e de possíveis mortes, nós não temos notícias.

Sobre a questão de tortura em Cuba e a liberdade de expressão, são dois medidores importantes do nível de sua democracia. É evidente que não vamos comprar uma situação de luta revolucionária, a uma situação de “normalidade”. Uma situação revolucionária, para os revolucionários, é não somente uma situação desigual, “desfavorável” materialmente, mas extremamente complexa. Por isso é “compreensível” que durante a Revolução, tenham ocorrido julgamentos sumários e, provavelmente, tortura física. Isto se depreende de alguns relatos, não necessariamente contra-revolucionários. Assim, conquanto toda uma discussão se tenha realizado no seio dos dirigentes revolucionários sob a questão da ética revolucionária nestas questões – que perpassaram a contribuição original de Frantz Fanon e da qual o próprio Che foi um dos principais mentores, a questão do tratamento dos prisioneiros das revoluções resta uma questão fundamental. Os torturadores são torturados, dizia Fanon. Depois da tomada do poder infelizmente tais questões não foram retomadas.

A experiência cubana permanece de uma atualidade exemplar. É relativamente conhecido o caso de Benigno, que foi se tornou companheiro de Che nas montanhas de Cuba ainda durante a guerrilha e a quem, dentre outras coisas, agradece de tê-lo alfabetizado. Em Che um dos aspectos da revolução permanente foi a luta permanente pela construção do novo homem. Benigno foi um exemplo de sua luta. Pois bem: ele se acha exilado na França, depois de ter sobrevivido à experiência boliviana fugindo a pé pelo Chile. Ele não pôde permanecer em Cuba porque quis cobrar contas aos dirigentes cubanos responsabilidades em torno da tragédia de Che na Bolívia. Dois livros relatam sua experiência, ele que foi um dos braços direitos de Che – sem falar de Camilo Cienfuegos que desapareceu misteriosamente no dia do seu casamento dois ou três anos depois da tomada do poder:

1)    Dariel Alarcón Ramírez e Mariano Rodríguez. Les survivants Du Che. Monaco. Éditions du Rocher. 1995 (não traduzido no Brasil);

2)    Dariel Alarcón Ramírez « Benigno ». Vie et mort de la révolution cubaine. Paris, Fayard, 1996. (também sem tradução)

Contudo e independentemente de qualquer coisa se pode colocar uma única questão: porque não se deixa o “desertor” da Ilha se ir embora? Qual a necessidade de prender aqueles que não querem mais ficar em Cuba?

Um amigo meu me contou que uma vez estava passando férias na Ilha de Itaparica - que fica em frente a Salvador, na sua baia, portanto, e encontrou num dos seus hotéis, algo como 15 jovens estudantes com idades entre 19 e 25 anos. Faziam parte de uma banda de rumba que veio se apresentar em Salvador. Este amigo - que tem casa em Itaparica, depois de ter simpatizado com eles que se interessavam muito pela música brasileira, convidou-os para que fossem até sua casa, escutar música, num sábado à noite. Eles aceitaram dizendo que teriam que falar com o chefe da equipe. Mas certo mal estar já havia se instalado pelo simples convite. No dia marcado, meu amigo telefona para confirmar. Das evasivas não se saiu até uma negativa mal disfarçada, mas sem explicação assumida.  De são consciência, desse socialismo eu não quero para os meus filhos e, portanto, eu defendo as conquistas da revolução (educação, saúde, etc.) e o povo cubano. Existe assim, pelo menos uma questão que pode ser colocada diante da constatação que Cuba fez uma revolução, mas não é socialista. A questão que pode ser colocada é: em Cuba, hoje, nas condições que são as suas, é possível se aprofundar conquistas democrático-socialistas? Minha resposta é sim. Os organismos de elaboração dessa política precisam ser desenvolvidos e chamados a elaborar sua política. Trata-se de condição sine qua non da sobrevivência de qualquer revolução popular. É preciso, pois, permitir que o povo exerça o poder na prática e aprenda também na prática, diretamente, o exercício do poder.

Desgraçadamente, e vocês têm razão, não se faz uma revolução sem violência. Mas existem violências e violências e diferentes alvos que sofrem sua ação.  Uma coisa é durante a luta pela tomada do poder usar dar armas de fogo. Outra coisa é você fazer prisioneiros e arrancar suas unhas para que eles delatem seus superiores ou subordinados. Outra coisa é impedir-lhes de que possam dizer dessa democracia eu não quero, muito particularmente quando não existe troca de fogo permanente, quando não se está numa guerra aberta. Tudo bem: Cuba permanece sob bloqueio econômico. Mas afinal não é melhor que os “dissidentes” saiam do que mantê-los próximo?  O filme Antes de anoitecer no qual Javier Barden vive o papel do poeta cubano Reynaldo Arenas, discriminado e perseguido por ser homossexual, nos ajuda muito a pensar qual o socialismo que queremos. Cuba não alcançou o socialismo porque estatizar a produção, mesmo a do grande capital, não é suficiente para alcançá-lo. O blóqueio econômico imposto pelos EUA, não é justificativa para que medidas de construção de um progressivo governo dos trabalhadores possa ser empreendidas. O povo precisa aprender a governar através de seus organismos de conscientização, organização e expressão (seus jornais próprios) e para que estes se transformem em um poder efetivo. Educação e saude são conquistas muito boas que a Noruega, a Suécia, a Dinamarca etc., também efetivaram sem que possamos dizer que se tratam de países democráticos. A Alemanha de Hitler acabou com o desemprego, inclusive contra muitos capitalistas e isto não pode nos fazer adeptos do projeto hitlerista. Ademais, a maior educação e a maior saude deve ser revelada pela capacidade desse povo poder discutir livremente, se organizar livremente, porque senão vai ficar sempre a questão: para que que serve o socialismo, senão como obra dá emancipação e para a emancipação dos trabalhadores? Quanto ao bloquéio seguramente países como o nosso têm responsabiolidades. A união de vários países latino americanos (Brasil, Bolívia, Venezuela, Equador, etc.) podem bem ajudar pelo menos a amenizar esta situação. A Venezuela pode ceder muito mais que petróleo, tanto quanto o Brasil, o Equador e a Bolívia. Um mercado comum da solidariedade latino-americana pode muito bem ser construído, inclusive para além da econômica. E este mercado pode se estender à África e à Àsia também. Para que isto ocorra é preciso que forças subjetivas também sejam mobilizadas de modo multilateral.

São outras tantas questões que precisamos discutir. Precisamos sair urgentemente daquela posição que, por pretender que o socialismo – como dizem alguns, é uma utopia e por definição não existe em lugar algum – não há porque o colocar na ordem do dia. Subordinado a essa perspectiva está aquele velho argumento que perdurou como subproduto das frentes populares e do estalinismo da necessidade de acumulação de forças e da revolução por partes. Há quem defenda com grande capacidade de contorção que a China descobriu a verdadeira via para o socialismo: o desenvolvimento pleno de um capitalismo dirigido por mandarins vermelhos. E assim, enquanto discutimos a acumulação de forças até para discutirmos o socialismo – se ele existe ou não e em que el consiste, a humanidade entrou há muito tempo numa escalada vertiginosa e muito pouco consciente para a maioria da população, de destruição quando, ao mesmo tempo, a chamada globalização, fundiu os tempos históricos de todos espaços se na época de Marx já não era mais possível usar o argumento do atraso de determinadas reguiões do planeta para a construção do socialismo, hoje muito menos ainda. O socialismo hoje, especialmente para quem se reividica de Marx e de suas teorias, é o patamar mínimo necessário do qual qualquer reflexão precisa partir.

Obrigado pela atenção e bom domingo para todos.

Abraços do amigo,

Jorge


Autor: Jorge Nóvoa
Publicação vista 1767 vezes


Existe 0 comentário para esta publicação
Enviar comentário


Confira na mesma editoria:
Bolsonaro pode ser uma espécie de macaco sujo de óleo que tira o carro do buraco
Bolsonaro pode ser uma espécie de macaco sujo de óleo que tira o carro do buraco
O que há de verdade na “Carta Aberta ao senador Renan Calheiros”
O que há de verdade na “Carta Aberta ao senador Renan Calheiros”
Copyright 2014 ® Todos os Direitos Reservados.