Deus e Ratzinger

segunda-feira, 21 de junho de 2010

SARAMAGO *16 DE NOVEMBRO DE 1922 + 18 DE JUNHO DE 2010 Que pensará Deus de Ratzinger? Que pensará Deus da igreja católica apostólica romana de que este Ratzinger é soberano papa? Que eu saiba (e escusado será dizer que sei bastante pouco), até hoje ninguém se atreveu a formular estas heréticas perguntas, talvez por saber-se, de antemão, que não há nem haverá nunca resposta para elas.

Deus e Ratzinger



Como escrevi em horas de vã interrogação metafísica, há uns bons quinze anos, Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio. Está nos Cadernos de Lanzarote e tem sido frequentemente citado por teólogos do país vizinho que tiveram a bondade de me ler. Claro que para que Deus pense alguma coisa de Ratzinger ou da igreja que o papa anda a querer salvar de uma morte mais do que previsível, seja por inanição, seja por não encontrar ouvidos que a escutem nem fé que lhe reforce os alicerces, será necessário demonstrar a existência do dito Deus, tarefa entre todas impossível, não obstante as supostas provas arquitectadas por S. Boaventura, como a de esvaziar os oceanos com um balde furado ou mesmo sem furo nenhum. Do que Deus, caso exista, deve estar agradecido a Ratzinger é pela preocupação que este tem manifestado nos últimos tempos sobre o delicado estado da fé católica. A gente não vai à missa, deixou de acreditar nos dogmas e cumprir preceitos que para os seus antepassados, na maior parte dos casos, constituíram a base da própria vida espiritual, senão também da vida material, como sucedeu, por exemplo, com muitos dos banqueiros dos primórdios do capitalismo, severos calvinistas, e, tanto quanto é possível supor, de uma honestidade pessoal e profissional à prova de qualquer tentação demoníaca em forma de subprime. O leitor estará talvez a pensar que esta súbita inflexão no transcendente assunto que me havia proposto abordar, o sínodo episcopal reunido em Roma, se destinaria, afinal, a introduzir, com mais ou menos jeito dialéctico, uma crítica ao comportamento irregular (é o mínimo que se pode dizer) dos banqueiros nossos contemporâneos. Não foi essa a minha intenção nem essa é a minha competência, se alguma tenho.

 

Voltemos então a Ratzinger. A este homem, decerto inteligente e informado, com uma vida activíssima nos âmbitos vaticanais e adjacentes (baste dizer que foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, continuadora, por outros métodos, do ominoso Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido por Inquisição), ocorreu-lhe algo que não se esperaria de alguém com a sua responsabilidade, cuja fé devemos respeitar, mas não a expressão do seu pensamento medieval. Escandalizado com os laicismos, frustrado pelo abandono dos fiéis, abriu a boca na missa com que iniciou o sínodo para soltar enormidades como estas: “Se olhamos a História, vemo-nos obrigados a admitir que não são únicos este distanciamento e esta rebelião dos cristãos incoerentes. Em consequência disso, Deus, embora não faltando nunca à sua promessa de salvação, teve de recorrer amiúde ao castigo”. Na minha aldeia dizia-se que Deus castiga sem pau nem pedra, por isso é de temer que venha por aí outro dilúvio que afogue de uma vez os ateus, os agnósticos, os laicos em geral e outros fautores de desordem espiritual. A não ser, sendo os desígnios de Deus infinitos e ignotos, que o actual presidente dos Estados Unidos já tenha sido parte do castigo que nos está reservado. Tudo é possível se o quer Deus. Com a imprescindível condição de que exista, claro está. Se não existe (pelo menos nunca falou com Ratzinger), então tudo isto são histórias que já não assustam ninguém. Que Deus é eterno, dizem, e tem tempo para tudo. Eterno será, admitamo-lo para não contrariar o papa, mas a sua eternidade é só a de um eterno não-ser.


Autor: José Saramago
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Existe 12 comentários para esta publicação
segunda-feira, 21/6/2010 por José Jorge Brito
Deus e Ratzinger
Sempre na história da Igreja pessoas cresceram como intelectuais - Ou discursando a seu favor ou contra. É normal que comentem sobre ela...é sinal que existe. Quando deixarem de comentar estarei preocupado...será seu fim?
sábado, 19/6/2010 por Maria Aparecida
JOSÉ SARAMAGO
Chorei a sua morte!! mesmo sabendo que é um fato... Deus existe... Paulo Stefano falou tudo! tbém penso assim. Meus sentimentos aos amigos e familiares deste insquecível ser humano.
sábado, 19/6/2010 por hc-maia
Funk-se quem puder...é imperativo viver...
O Mago Sara,(SARAMAGO ao contrário),terá uma conotação maior da sua Obra,com a sua morte...claro!! O Ratzinger está aí pra pongar.Então diria Gil:- "Funk-se quem puder..é imperativo viver" ( a censura liberou!!!)
quarta-feira, 28/1/2009 por Lorene Figueiredo
O Foco e a Falsa Polêmica
O autor não está quetionando a existência de Deus,mas usando a polêmica tão antiga quanto a própria fé para criticar o anacronismo da Igreja em "escolher" um Papa fundamentalista, pernteceu aos quadros nazistas, e perseguiu padres progressistas na A.
sábado, 24/1/2009 por Edvaldo deAlmeida
Salve, salve José Saramago!!!
Como tudo que tem escrito, tanto seus livros como máterias como esta, é de sublime categoria e inteligência! Leitor assíduo de Saramago, gosto especialmente do Evangelho Segundo Jesus Cristo!!! Incomparável, José Saramago, salve , salve!
sexta-feira, 23/1/2009 por Ester Janczeski
Sim, existe dentro de nós!
Penso como vc , Paulo Stefano. E um dia toda humanidade irá pensar assim. Estamos além do nosso tempo por pensarmos assim!
sexta-feira, 23/1/2009 por Rosália - SSA/BA
Deus e Ratzinger
Deus existe. Concordo plenamente com Paulo Stefano. Parabéns Paulo.
sexta-feira, 23/1/2009 por Nadir
Evangelho Segundo Saramago
Nada mal para quem já escreveu um Evangelho segundo ele mesmo, o próprio. Mas não se enganem, com ou sem "ratio", só se atiram pedras em árvores carregadinhas de frutos...
sexta-feira, 23/1/2009 por Adelina
SEM PALAVRAS...
Digno de lástima a leitura deste Texto... SEM PALAVRAS...
sexta-feira, 23/1/2009 por Artur
coitado dele
sem palavras
sexta-feira, 23/1/2009 por SILVIO ABREU CAMPOS
NEM RATZINGER, NEM SARAMAGO
Penso que Deus, na sua onisciência e ubiquidade assiste perplexo essa diatribe entre Saramago e Ratzinger, preferindo alhear-se dessa discussão sem importância, preferindo a comodidade da fé daqueles que jamais deixarão de amá-lo.
sexta-feira, 23/1/2009 por Paulo Stefano
Deus existe !
Deus existe no coração de cada um , cada ser humano é o templo do seu Deus , ele existe com Papa sem Papa com Igreja sem Igreja com Biblia sem Biblia basta querer e respeitar cada ser na sua Individualidade e ponto final.
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