Praia: espaço disputado

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Quando vamos à praia, nem nos damos conta das mudanças ocorridas para que este espaço se transformasse no fenômeno de massa de nossos dias ensolarados. Antes visto como um lugar repleto de imagens repulsivas e de toda a sorte de perigos, o olhar sobre o mar vai se modificando e se consolida a partir da segunda década do século passado. Assim, num primeiro momento, a praia se torna um espaço dotado de propriedades medicinais e recomendado no tratamento das pessoas doentes...

Praia: espaço disputado

...que iam em busca do vigor do sal, banhando e sentindo a maresia durante o inverno e tomando todo o cuidado para evitar o contato com o sol.


Beira do mar, lugar comum (...)

A água bateu, o  vento soprou

O fogo do sol, o sal do senhor

(Lugar Comum – Gilberto Gil e João Donato)


Posteriormente, a descoberta das propriedades terapêuticas dos banhos de sol desencadeia um processo social de institucionalização de novos gostos nas classes sociais mais abastadas, levando este espaço a se converter definitivamente num lugar da moda, passando a atrair um contingente cada vez maior de banhistas em busca de lazer, diversão e, especialmente, de um corpo bronzeado, apresentado como marca de distinção e sensualidade, por sua vez, auxiliado pela redução dos trajes de banho e pelo emprego dos recém-surgidos cremes bronzeadores, que, mais tarde, foram desenvolvidos tanto para garantir o bronzeado como para tentar proteger o corpo contra o perigo do câncer de pele cada vez mais freqüente nestes tempos de incidência crescente dos raios ultra violeta, decorrente do buraco - com vocação para cratera-, provocado na camada de ozônio.

Odores e sabores - Após esta breve retrospectiva, vamos dar um passeio numa praia de “Salvador da Bahia”.Ao chegarmos vemos um mar a perder de vista e observamos a baiana com seu tabuleiro cheio de odores e sabores.Também nos deparamos com um palco previamente preparado na areia à nossa espera, cujo espetáculo a ser apresentado quase sempre nos desagrada.

Compreende as cadeiras e os guarda - sóis das barracas (carregados de publicidade de cervejarias, cartões de crédito e lojas de jogo do bicho) - cujos proprietários, muitas vezes, ampliam indevidamente os espaços ocupados -, as espreguiçadeiras e cadeiras de aluguel, distribuídas estratégicamente pelos melhores lugares e em quantidade excessiva, consubstanciando um verdadeiro loteamento com a privatização deste espaço público de lazer que é a praia.

Somando-se a estes “inquilinos” já estabelecidos no local “pelo tempo de praia”, existe todo um comércio ambulante, expressão do nosso drama social, formado por subempregados, desempregados e demais pessoas que vieram “dar na praia”  - atraídas pela possibilidade de venda de mercadorias a consumidores potenciais -, oferecendo uma série de produtos e fazendo com que este “espaço de socialidade”, conforme denominado apropriadamente por Thales de Azevedo (1988), pelas transações de compra e venda aí realizadas, também seja transformado num espaço de trabalho, passando a funcionar como um autêntico mercado a céu aberto.

Piri pompom, piri pompom olha o queijo bom.Pois é, além do queijo coalho cantarolado e esquentado na brasa dos fogareiros itinerantes, são anunciados, dentre outros, cremes bronzeadores e protetores solares de variada eficácia; redes, cangas e vestidos; as “louras” estúpidamente geladas, os refris e a água mineral “do Candeal”, o churrasquinho de gato “da melhor qualidade”, o cachorro “prá lá de quente”, o côco-da- baía oferecido em profusão, o amendoim e os ovos de codorna tendo alardeadas suas propriedades afrodisíacas de viagra natural, o picolé da rediviva Capelinha, sendo apresentado segundo as regras do mais inventivo marketing, concorrendo no mesmo espaço com o picolé da multinacional, e, por último, mas não menos importante, o lanche natural para reafirmar simbolicamente a celebração e contato com a natureza.

Sem espaço - E se ainda não decidimos o que vamos consumir, os vendedores das pequenas barracas se revezam na oferta de produtos. Entre uma oferta e outra é colocada em prática uma gentileza recente que consiste na vinda de uma pessoa que molha os pés do banhista para abrandar o calor e, principalmente, cativar e ganhar a preferência da clientela numa possível compra.

Além destes trabalhadores que batalham para não “morrer na praia”, pode-se também mencionar a presença do principal vilão da área, o descuidista, praticante de pequenos ou grandes furtos, preocupação constante dos banhistas, que fica à espreita, aguardando um momento de falta de vigilância para entrar em ação.

E os banhistas, para onde vão? Ou melhor, como é que ficam? Quando não sucumbem à oferta das cadeiras de aluguel, resta pouco espaço para estender a canga ou a toalha e, até mesmo, para as crianças se divertirem, desenhando e construindo seus castelos de sonhos com porções generosas de areia molhada.Nesta mesma faixa de areia situada entre o mar e o muro, além da presença das atividades comerciais fixas e da passagem constante dos vendedores itinerantes, os banhistas, por vezes, sofrem a concorrência da prática de esportes, cujos aficcionados, mais preocupados em proporcionar espetáculo para si próprios, nem sempre respeitam o espaço das pessoas que se encontram nas proximidades.

Infelizmente a prática social de ir a praia, pensada como algo prazeroso e diferente do habitual do dia a dia, uma espécie de piquenique com banho, entremeada por momentos de interação, descontração e relaxamento onde se usufruiria as “virtudes da preguiça” reivindicadas por Lafargue (1999), por vezes, acaba se transformando na repetição de situações do cotidiano e permeadas de dissabores.Mas todo este esforço não poderá ter sido em vão.Afinal, o deslocamento de casa para a praia dá trabalho, exigindo algum grau de preparação, paciência e, sobretudo, altas doses de motivação.

Ciente deste fato, o banhista não se dá por vencido e vai à luta.Ao tempo em que mantém o seu pedaço de areia e garante o direito de estar ali, ele também, busca o lúdico vivenciando momentos alegres tais como, conversar, beber e brincar com os familiares e amigos, contemplar - dentre a “infinidade de mensagens” presentes na praia mencionada por Barthes (1978) - o mar verde azul iluminado pelo céu de brigadeiro, as embarcações que  passam a uma certa distância e apreciar (com a devida moderação) as pessoas desfilando seus corpos e seus sotaques captados nos fragmentos de conversas entrecortadas pelo som das ondas que quebram na beira da praia.

 

O autor é Doutor em Ciências Sociais, pesquisador do Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais (NUCLEAR) da UFBA e integrante da equipe técnica da CAR/SEDIR.

Referências:

AZEVEDO, Thales de. A Praia:espaço de socialidade. Salvador:Centro de Estudos Baianos da UFBA,1988.

BARTHES, Roland.Mitologias.São Paulo:Difel,1978.

LAFARGUE,Paul.O Direito à Preguiça. São Paulo:Hucitec, Unesp,1999.


Autor: Francisco Emanuel Matos Brito
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Existe 1 comentário para esta publicação
sábado, 31/1/2009 por João Carneiro Filho
PRAIA: ESPAÇO DISPUTADO
Vamos "a la playa oh, oh, oh ....."- lembro-me desta frase numa música de uma banda de rock nos anos 80. Resumindo, a praia é um lugar incomum, solidário e as vezes contraditório. A praia é o "Porto Seguro" de milhões de brasileiros.
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