A fábrica de alegrias

terça-feira, 26 de maio de 2009

O bairro era um dos mais pobres do Canadá. Agora está diferente. O distrito de Saint-Michel, em Montreal, situa-se longe do ritmo frenético do centro da cidade. Passam pessoas de bicicleta, a vizinhança habituou-se ao convívio com a excentricidade, que anda de mãos dadas com o sonho. O sonho começou há 25 anos, na rua, muito próximo do céu, porque os artistas de então tornavam-se gigantes, com a cabeça quase a tocar as nuvens, tal era a altura das “pernas de pau” em que se equilibravam.

A fábrica de alegrias


NA PERIFERIA DE MONTREAL ERGUE-SE A FÁBRICA ONDE OS SONHOS SÃO IMAGINADOS E CRIADOS: A SEDE DO CIRQUE DU SOLEIL. ALI A INSPIRAÇÃO ANDA DE MÃOS DADAS COM A CRIATIVIDADE

A fábrica não pára. A cada novo dia, os ateliês, os estúdios, os bares, o ginásio de fitness e os escritórios produzem novos artistas, novos talentos, novas ideias que ganham corpo no movimento nômade (há 19 espectáculos diferentes em excursão pelo mundo) ou que habitam uma sala durante anos seguidos— como é o caso de “Love”, em Las Vegas, inspirado  nos Beatles, por exemplo.

A rua continua presente dentro do edifício. O sol entra pelas paredes de vidro que dão para o exterior. No interior, essas transparências simbolizam o desejo de liberdade, mas principalmente criam a relação entre as diferentes áreas de trabalho, promovendo o encontro constante entre artistas e acrobatas em treino e funcionários de outros departamentos. Esta ideia arquitetônica traduz uma das imagens de marca do Cirque: nunca perder de vista o centro da dinâmica que os move e ali decorre, ou seja, a imaginação e a criatividade. E a relação com a rua. Talvez por isso pareça normal cruzar com uma pessoa a andar de bicicleta num corredor.

O Cirque du Soleil é um pequeno globo terrestre em menor escala. O multiculturalismo está presente nos espectáculos, e na inspiração da criatividade. Mas essa impressão de um pequeno planeta Terra torna-se ali mais clara. As línguas misturam-se ao ritmo do movimento dos corpos que se cruzam no caminho. Na cantina, os cheiros trazem lembranças dos quatro cantos do mundo. E mais ainda desse lugar distante chamado fantasia. A sopa é ‘poção mágica’. O café expresso é tirado numa máquina aparentemente tecnológica. Mas é só a fingir. Por trás esconde-se uma funcionária que faz tudo manualmente. No final das refeições, cada um é responsável por fazer a seleção dos dejetos. A água da chuva é colhida e reaproveitada. Têm no exterior um quintal onde plantam vegetais e frutas, que usam para cozinhar e que partilham com a vizinhança.

De fora, parece um edifício funcional, mas esconde lá dentro o colorido de um arco-íris de faz-de-conta que inventa uma história a cada novo espetáculo. A qualquer instante surge o espanto. Num dos estúdios, uma acrobata rodopia num trapézio, em viravoltas mirabolantes a cru, sem figurino que a transporte para uma dimensão além do humano. Quase roça por uma pessoa que por ali passa. Se desviamos um pouco o olhar, encontramos o sorriso de uma asiática com o corpo virado do avesso, numa pose aparentemente impossível. Ao fundo, um rapaz desafia a gravidade no trampolim. Fala português e chegou há pouco tempo.

Diogo Faria está a treinar para a personagem Old Bird, na versão de arena do histórico “Alegria” (de 1994) prestes a estrear. Ele é português e aceitou em 2006 o convite para entrar no Cirque. Nuno,outro português que já foi campeão Olímpico, faz parte do elenco de “Zaia”, o espectáculo residente em Macau. Ambos foram descobertos pelos chamados ‘olheiros’ do Cirque.





Além de todo o universo de desenvolvimento artístico, e de um ginásio de fitness que todos os funcionários podem frequentar, a sede do Cirque tem uma larga extensão de área ocupada por ateliês de artesanato, onde tudo é feito à mão. Uma peruca, por exemplo, com implantação de cabelo artificial fio a fio, pode demorar 150 horas. Mas para lá das cabeleiras pensadas e executadas ao pormenor, são também feitos, às centenas, chapéus, sapatos, figurinos, tecidos — com desenhos e cores impressos ao metro ou pintados à mão... A imaginação é o limite.

Percorrer aqueles ateliês é encontrar paredes inteiras, de cima a baixo, cobertas de formas de pés de madeira; sucessões de figurinos coloridos, de formas invulgares; exemplares de tecidos que confundem em novas combinações as cores do arco-íris ou inventam novos desenhos, padrões e peles de criaturas que não existem. Por ali estão protegidos os cadernos que guardam as memórias de todos os traços das ideias originais, aos quais regressam sempre que é preciso refazer algo.

A visão mais impressionante é a das dezenas de bustos de um branco pálido, alinhados lado a lado. Os olhos estão fechados e os lábios cerrados, alguns a vislumbrar a possibilidade de um sorriso que não chegou a florir. São a reprodução exata da cabeça de cada um dos artistas que alguma vez entraram num espetáculo do Cirque du Soleil. Se as bailarinas têm os pés medidos ao pormenor a pensar nas sapatilhas ideais, os artistas do Cirque têm o molde da sua cabeça, feito logo que lá chegam.

Estes atletas-artistas desafiam as alturas, a elasticidade do corpo no contorcionismo, a velocidade e a vertigem do ar no trapézio ou no malabarismo. Muitas vezes têm de usar chapéus, cabeleiras ou máscaras. Estes têm de ser feitos à medida da cabeça que as vai usar. Para que a vida não se interrompa a meio de um vôo. No final, tudo é construído em função de uma ideia que um criador teve. Mas o sonho, que eles dizem que continua, é esse inicial que nasceu na rua, em cima “pernas de pau” que transformam os homens em gigantes: tocar com a cabeça nas nuvens.


Autor: Adolfo de Castro
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