Eu ou nós?

domingo, 2 de agosto de 2009

O maior festival de fotografia da França apresenta 66 exposições. Nas paredes, a decadência de um mundo à beira do caos espelha-se entre o vazio do sexo, o refúgio das drogas e o fracasso das ideologias

 Eu ou nós?







HÁ 40 ANOS que o Verão em Arles quer dizer Fotografia. A pequena cidade do Sul de França transforma-se durante dois meses e meio na montra mundial de uma arte que tanto procura caminhos como avança passos firmes. Alinham-se tendências, despertam-se novos olhares, reafirmam-se valores, numa amálgama de exposições que servem a reflexão e a discussão: em que mundo vivemos?

A resposta não é fácil. A edição do Festival Internacional de Fotografia de Arles 2009, iniciada a seis de Julho e com data de encerramento marcada para 13 de Setembro, aposta em 66 exposições, onde se juntam artistas da Europa, da América, da África e da Ásia. Não há linhas homogêneas. Os enquadramentos culturais não o permitem. Mas há traços que atravessam fronteiras.

Num primeiro olhar, a solidão do eu ou a exortação do umbigo surgem como o traço que percorre mais cruzamentos, ancorado num déjà vu que associa sexo, droga e álcool (o glamour do rock’n’roll já desapareceu). Os norte-americanos David Armstrong e Jim Goldberg, o francês Antoine D’Agata, os suecos J.H. Engström e Anders Petersen (“PARIS”, 2001) marcam de forma premente essa linha estética em distintas apropriações da realidade. Se o mundo de D’Agata se fecha em si próprio, assumindo o fotógrafo o protagonismo de uma sociedade sem amanhã e que vive entre paredes esconsas de bordéis sempre iguais, onde um corpo ou uma seringa significam o mesmo, Petersen toma a posição do voyeur e deixa-se vaguear por mundos alheios, assumindo uma proximidade mais distante. Se Engström se centra no seu universo afetivo e cotidiano, Goldberg enfatiza a experiência de vida de quem fotografa. Está sempre lá a decadência das relações humanas. A diferença encontra-se nos limites a que ela se atém ou que ela ultrapassa, puxa ou empurra. O extremo aparece com o primeiro trabalho do norte-americano Leigh Ledare, 33 anos, “Pretend You’re Actually Alive”. O fotógrafo assume abertamente o incesto e expõe de forma impactante a sua relação sexual com a mãe. A arte não é (nunca foi) moralista...

O contraponto a este primeiro olhar faz-se através de leituras mais acutilantes de um mundo cujas fronteiras já não se cingem ao eu e ao tu, ou ao outro, mas se abrem ao nós. A confrontação com esse mundo real é a única forma possível de partilha. A comunhão do abismo, do caos pessoal, político, social, religioso, ideológico aninha-se entre a consciência e a esperança, como um arrepio gelado ou tórrido. Individual. Coletivo. Esse é o universo de “Bone Lonely” e “Far Cry” (em formato de projeção vídeo), de Paulo Nozolino, onde o público de Arles se amontoa para beber sofregamente uma água que contamina, contagia e seduz. É um murro no estômago e um suspiro de alívio. Um mundo pisado, repisado, mais uma vez pisado, que transfere para a fotografia linhas de pensamento alinhadas em forma de poesia. A denúncia substitui a apologia. O documento sobrepõe-se à vida privada.

Espaço ainda para um terceiro olhar, o de Rimaldas Viksaitis, lituano, deficiente motor, Prêmio Descoberta 2009. Junto à fronteira com a Rússia, o fotógrafo retrata o cotidiano de gente no limite da pobreza, na dependência do álcool, num reino de consanguinidade grotesca, infantil e romântica a um só tempo.

 


Autor: Adolfo de Castro
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