Cadaqés; Dalí viveu, pintou e amou aqui

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

“A beleza e a excelência da paisagem de Cadaqués devem-se à sua estrutura. Cada colina, cada rochedo parecem desenhados por Leonardo em pessoa. À parte dessa estrutura, não há nada, e como vegetação, apenas umas pequenas oliveiras coroam com seus cabelos dourados as frentes pensativas das colinas enrugadas pelas trilhas meio apagadas.

Cadaqés; Dalí viveu, pintou e amou aqui

As vinhas que cobriam os flancos das montanhas desapareceram dizimadas pela filoxera. Essa desolação acentua ainda mais a estrutura da costa. Os muros de sustentação de antigas vinhas, similares as linhas geodésicas, traçam degraus irregulares pelos quais toda a montanha parece majestosamente descer até ao mar. Sorridentes, taciturnos, exaltados de sentimentos dionisíacos nos cumes nostálgicos, rafaelitas ou paladianos, estes degraus voltam a florescer à borda da água. Sobre esta terra estéril e solitária, de rugosidade melancólica, repousam ainda hoje os dois pés nus e colossais desse fantasma sereno e perfumado que encarna e personifica todos os sangues e todos os vinhos ausentes da antiguidade”. 


É assim que Dalí descreve na sua autobiografia “A Vida Secreta”, a paisagem que será o pano de fundo de praticamente todos os seus quadros e o canto do mundo que mais ama. 

É ali ao lado, no minúsculo porto de Port Lligat, que se estabelece com Gala, a sua musa, quando seu pai o expulsa de casa. Curiosamente, será com o produto da venda de um quadro que gerou a ira do pai que Dalí compra a pequena casa de pescadores de Lídia “La bien plantada”, de quem o pintor dirá: “tinha o cérebro paranoico mais magnífico, tirando o meu, que alguma vez conheci”. Lídia tinha vagamente conhecido o crítico e escritor catalão Eugeni d’Ors, e sustentava ser ela a personagem do seu livro “La Bien Plantada”, entre outras fabulações que deliciavam Dalí. 

Em Port Lligat refugia-se do rebuliço da vida parisiense, reencontrando-se na solidão que tanto procura desde a sua infância. “As manhãs ali são de uma alegria selvagem e rude, as tardes, muitas vezes, de uma melancolia mórbida”, dizia ainda Dalí sobre a terra que considerava a mais árida do planeta. O conjunto que se pode hoje visitar é o resultado de várias modestas habitações de pescadores que foi comprando e juntando ao longo dos anos. A casa de Port Lligat é talvez o maior ponto de atração do triângulo de Dalí, não só pela estrutura única do edifício, mas também pela sua localização no magnífico Cabo de Creus, presente no interior graças a enormes vãos envidraçados. A decoração é um misto de simplicidade e bom gosto – com várias peças antigas adquiridas pelo casal – combinando com inúmeras excentricidades, como uns cisnes embalsamados na biblioteca, ou a forma em cruz singular da piscina, na ponta da qual, num pequeno terraço redondo, o casal recebia as visitas. Ou ainda as enormes camas de colcha rosa-shocking, que permitiam a Dalí ser o primeiro espanhol a ver nascer o sol. É ainda em Cadaqués, de onde o seu pai era originário e onde estava a casa de férias da família, que o artista catalão conhece Gala. Será em 1929, quando esta acompanha o marido Paul Eluard (com André Breton e Aragon, os três mentores do surrealismo), em visita a Dalí na pequena vila pesqueira. Segundo o pintor, Gala, de origem russa e 10 anos mais velha, era o segredo mais bem guardado da sua vida. Além do evidente papel de modelo, na sua autobiografia, o artista apenas revela os poderes de médium de Gala como influência na sua obra. 

A fraqueza, a velhice e o luxo são três coisas que Dalí dizia adorar. É numa viagem a Málaga com Gala que decide que terá que fazer fortuna para tornar a primeira realidade. Assim, parte para Paris, onde passará então grande parte da sua vida, para chegar à fama. É pela mesma razão que Dalí, de uma criatividade e produção incansáveis – desde filmes (como o Cão Andaluz, absolutamente surrealista, com o seu amigo Luis Buñuel), joias (uma bela coleção encontra-se em Figueres), peças de roupa para Coco Chanel, de quem era íntimo, balés, artigos em revistas como na emblemática “Minotaure”, decoração de casas – chega ao extremo de fazer publicidade e até vitrines de estabelecimentos comerciais. Será esse excesso de exposição comercial que levará André Breton – que acaba por expulsá-lo do grupo surrealista parisiense – a chamá-lo de Ávido Dólar. Ambos os fatos deixam Dalí indiferente, ou melhor, será mais uma razão para ser falado e confirmar sua unicidade. À pergunta de um jornalista “O que é surrealismo?”, o narcisista responderá taxativo “O surrealismo sou eu!”. 

Dalí nasceu em 1904, sob o signo de touro, a vinte quilômetros de Cadaqués, em Figueres, onde o seu pai era tabelião. Antes dele, os pais tiveram um filho que morreu prematuramente, o que explica a educação liberal e mimada que Dalí recebeu, e o que reforçará o seu caráter caprichoso e anárquico. Quando o jovem tem 16 anos, a sua mãe morre, no mesmo ano em que vai para a Escola de Belas Artes de San Fernando de Madrid, onde se torna amigo de García Lorca e Buñuel. Cinco anos mais tarde é expulso por criticar abertamente a seleção de um professor, em sua opinião, demasiado acadêmico. 

museu-teatro que Dalí projetou para expor as suas obras encontra-se justamente em Figueres (a uma hora ao norte de Barcelona pela autoestrada), por cima de um teatro do séc. XIX que incendiou na guerra civil e do qual restam alguns vestígios. Inaugurado em 1974, é o único, mas suficiente, ponto de interesse da cidade. Dando asas à sua imaginação, Dalí desenhou um edifício ao nível das suas obras, ou seja, absolutamente surrealista, desde a sua casa colada ao museu com uma monumental fachada cor-de-rosa coberta a cocós (que, além de uma deliciosa provocação, considerava aterrorizadores) e com gigantescos ovos no telhado, à coleção propriamente dita. É notório o sentido de humor do artista, característica que fará com que nunca leve muito a sério as teorias surrealistas, apesar do seu método de análise paranoico-crítico. Ligeireza essa que também irritará os surrealistas de Paris. Dalí conta, na sua autobiografia, que um dia é convidado a dar uma conferência para explicar o seu famoso método. Como já era habitual, o certame é aplaudido com entusiasmo pelo público, apesar da erudição e das expressões rebuscadas que lhe eram próprias. Dalí tinha como lema cretinizar as massas. Confessa que nem ele percebia o seu significado. Ouvir a pergunta “O que é que isso representa” era uma das coisas que mais prazer dava a Salvador.  

Nas cerca de 4 mil obras expostas, o visitante é mergulhado no universo daliniano, desde a obra mais acadêmica, a instalações, como o famoso “rosto de Mae West” podendo ser utilizado como apartamento”, passando pelo impressionismo, cubismo, favismo, jogos óticos e sobretudo surrealismo. Apesar de Dalí afirmar ser um ex-surrealista a partir da década de cinquenta, época em que envereda por um gênero mais próximo do realismo e interessa-se por temas mais místicos, na realidade foi dos raros pintores que mantiveram um estilo toda a sua vida (os outros estilos foram mais experiências que fez ainda estudante ou no princípio da sua carreira). Contrariamente à maioria dos pintores do mesmo movimento, o seu surrealismo era devido mais ao tema e não ao estilo, este último clássico, sendo Dalí um paladino da tradição. Aliás as suas grandes referências são Rafael, Millet ou Velazquez, para dar alguns exemplos, e o pintor catalão abominava a arte abstrata, que se desenvolvia em paralelo aos movimentos figurativos. Por outro lado, contrariamente aos processos automáticos desenvolvidos pelos surrealistas (em que a criação, seja na escrita, seja na pintura, era um processo não racional, não controlado pelo seu autor), Salvador defende o seu método paranoico-crítico, em que leva à tela propositadamente, se bem que de forma irracional, as imagens que o perseguem. São exemplo disso as formigas ou os gafanhotos, os personagens antropomórficos, os relógios moles, as muletas, alusões sexuais, e tantos outros que aparecem repetidamente nas suas telas.

pesar de, para os que se lembram da figura “bigoduda” que falava alto arrastando as palavras, a memória de o homem parecer distante, Dalí morreu apenas em 1989, nesse mesmo teatro-museu para onde tinha se mudado após um incêndio no castelo de Púbol cinco anos antes, e na cripta do qual se encontra sepultado. A sua última obra será pintada em 1983, um ano após a morte da sua musa Gala. 

Nos anos 30, Dalí promete a Gala que um dia lhe compraria um castelo. Em 1970 oferece-lhe Púbol, a 40 quilômetros ao sul de Figueres, para onde se retira a sua musa, desta vez, sozinha. Dalí só podia ir até lá quando convidado por Gala. Mais faustoso do que Port Lligat, o castelo medieval é recheado por um conjunto de móveis antigos, desenhos e pinturas oferecidas por Dalí, vestidos de Gala e várias excentricidades, como por exemplo, um conjunto de esculturas de elefantes no jardim. E os despojos de Gala, lá enterrada. 

Entre as pessoas (raras) que Dalí admirava, contam-se Picasso, Freud e Gaudi. O primeiro tinha em comum, além de uma enorme vivacidade e capacidade de trabalho, uma marcada imodéstia. Dalí conhece-o na sua primeira viagem a Paris, em 1927. “Quando cheguei à casa de Picasso, na rue de La Boétie, fiquei tão comovido e em respeito como se tivesse uma audiência com o próprio Papa. Venho a sua casa, antes de ir ao Louvre, disse-lhe. E não fez nada mal – respondeu ele”. 

Freud, que o mestre desenhou como uma cabeça de caracol, era uma fonte de inspiração para as suas obras, sendo que o surrealismo tem como fonte as teorias da psicanálise. A sua admiração leva Dalí a visitá-lo em Londres, em 1938, para lhe mostrar a Metamorfose de Narciso e expor o seu método paranoico-crítico. Freud não teria ficado muito impressionado e o comentário de maior relevo que se reteve desse encontro teria sido “nunca tinha visto um protótipo tão perfeito de espanhol. Que fanático!”. Quanto ao arquiteto, seria cronologicamente difícil Dalí conhecê-lo (morre em 1926), mas o seu estilo gótico mediterrâneo, como lhe chama o pintor, será de grande influência nas suas obras. 

Dalí também não era tão louco quanto se fazia. Aliás, ele próprio dirá “a grande diferença entre mim e um louco é que eu não sou louco”. As suas loucuras eram na realidade pura provocação. Criar certo mal-estar era o divertimento predileto. 

Conta-se que um dia tinha sido convidado para dar uma conferência sobre o seu famoso smoking afrodisíaco, o qual tinha 88 pequenos copos cheios de licor de menta. Para o espanto de todos, o mestre aparece no interior de um escafandro. “Um especialista tinha vindo enroscar com segurança o capacete. Os sapatos de chumbo tinham-se revelado tão pesados que mal conseguia levantá-los. Dois amigos tinham-me ajudado a arrastar-me até à tribuna onde eu tinha aparecido no meu estranho traje, segurando numa coleira duas perdizes brancas. O público londrino deve ter ficado singularmente angustiado, porque fez-se um silêncio total. Nesse momento, senti-me desmaiando de asfixia e chamei para que desenroscassem o capacete. Só que o especialista tinha sumido. Tentaram então rasgar o traje, e depois, finalmente martelar nos parafusos. A cada golpe, pensava que ia morrer. O público, convencido de que se tratava de uma performance montada em detalhes, aplaudia alegremente. Mas quando finalmente apareci, a cabeça descoberta, pálido como um agonizante, todo mundo ficou chocado com esse lado dramático que é próprio dos meus atos”. 

É evidente que depois de Dalí, que dizia ficar atônito com a cegueira dos humanos em fazer e refazer sempre as mesmas coisas, pouco há para inventar!  

 

 


Autor: Celso Mathias
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