A vida de “Gabo”

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Gerald Martin demorou 17 anos para construir o livro “Gabriel García Márquez — Uma Vida”, agora traduzido ao português. Em 690 páginas nos é contada a vida e a obra, os meandros políticos, os segredos familiares, a infância atribulada, a idade adulta, com a sua treva e a sua luz, a intrínseca luta de um fabulador e jornalista que, ao travar conhecimento com o seu biógrafo, avisou-o logo: “Não me obrigue a fazer o seu trabalho.”

A vida de “Gabo”


ERA UMA VEZ uma cidade condenada a desaparecer da memória dos homens, levada pelo pó e submergida em escombros, após cem anos de fervorosa solidão. E era uma vez uma cidade que jamais pôde desaparecer da memória dos homens, porque a sua ruína seria a ruína do livro, e o livro nunca esteve a ela predestinado. O autor, ao acabá-lo, confessou que desconhecia se tinha em mãos um romance ou um quilo de papel. E mais tarde acrescentou que se sentia “cansado” dele, que não passava de um volume superficial cujo sucesso se devia a um conjunto bem afinado de “truques de escritor”.

Que Gabriel García Márquez tenha renegado a sua primeira grande obra não é novidade para ninguém. Mas a história do processo que levou à sua conclusão, sinuosa e romanesca — incluindo o episódio em que o colombiano queima os 40 cadernos de notas, sob o argumento de que mostrá-los seria como “ser apanhado de calças curtas” — poderia ter-se perdido para sempre se não fosse pela obsessão de um professor de iteratura britânico em tornar-se biógrafo oficial do escritor. Gerald Martin demorou 17 anos para construir o livro “Gabriel García Márquez — Uma Vida”, agora traduzido ao português. Em 690 páginas nos é contada a vida e a obra, os meandros políticos, os segredos familiares, a infância atribulada, a idade adulta, com a sua treva e a sua luz, a intrínseca luta de um fabulador e jornalista que, ao travar conhecimento com o seu biógrafo, avisou-o logo: “Não me obrigue a fazer o seu trabalho.”

Gerald Martin levou a advertência ao pé da letra e entrevistou mais de 300 pessoas, desde a família ao próprio Fidel Castro. Rastreou também as origens do escritor, da natal Arataca às cidades para onde a família se mudou por capricho do pai, Gabriel Elígio, e a relação com os avôs maternos que o criaram até aos dez anos, especialmente com o coronel Nicolás Márquez, combatente na mítica Guerra dos Mil Dias. Nesta primeira parte, há uma mãe que chega de trem para rever o primogênito; há uma criança corroída pela timidez que cresce à margem dos pais; há irmãos e um pai que ela não conhece que a arrancará do lar ao qual estava habituada. García Marquez, Gabito, vai descobrir o mundo, isto é, o resto da Colômbia, deixando a luminosidade da Costa rumo à escura Bogotá, onde os poetas, engravatados e diletantes, se reúnem nos cafés. Os amigos de então nunca esqueceram a figura do “costeño” a entrar num desses antros vestido com roupa descontraída, piscando o olho à empregada e perguntando-lhe: “Esta noite?” Pensaram estar perante uma “causa perdida”.

Rapidamente se aperceberam do contrário. Ao primeiro texto que García Marquez assinou, aos 21 anos, para o jornal “El Espectador”, o editor falou no “nascimento de um escritor extraordinário.” Era quase como a transformação (consciente, involuntária) de Gregorio Samsa na “Metamorfose” de Kafka, que ele leu e releu como uma bíblia, na tradução de Jorge Luís Borges. Existiu um momento exato para García Márquez se tornar definitivamente nele próprio: a viagem que empreendeu com a mãe, Luísa, rumo a Arataca, para vender a casa que pertencera aos avôs: “O que me aconteceu foi que me apercebi de que tudo o que tinha acontecido na minha infância tinha um valor literário que eu só agora apreciava.” Nessa época, além de kafkiano, Gabo era admirador de Virginia Woolf e William Faulkner, cantante de boleros, frequentador de bordéis, eterno estudante de Direito, jornalista em apuros econômicos que vivia numa ‘casa de meninas’ quando começava a rabiscar a primeira novela, “A Revoada”, sobre a qual viria a dizer: “Isto não está mau, mas vou escrever uma coisa que será mais lida que o ‘Quixote’.”

O menino de olhar temeroso é agora o jovem de ambição desmedida que aspira a ser um segundo Cervantes. Não tarda converter-se-á no repórter enviado às entranhas do seu país, desenterrando histórias que lhe valeram ameaças de morte. Numa das suas mais importantes reportagens, conduz uma longa entrevista com um marinheiro que sobreviveu durante dez dias à deriva no mar. Ele próprio estava prestes a partir para uma deriva de três anos na Europa: em Roma estudou cinema, em Paris acossaram-no a pobreza e o amor, na Europa de Leste sentiu desapontamento e vazio: “Perdemos a nossa inocência”, teria comentado. No livro, fica explícito que esse sentimento engloba toda a experiência européia. A começar pela paixão, na capital francesa, por Tachia Quintana, de quem chegou a esperar um filho. A ruptura terá sido brusca e dolorosa, a relação marcada pela fome e pela escrita (paradoxos do ofício) de “Ninguém Escreve ao Coronel”.

A vida de García Márquez confunde-se com a da América Latina. Em Caracas, para onde rumou a convite de Plínio Mendoza (que foi embaixador da Colômbia em Lisboa) para integrar o staff da revista “Momento”, uma premonição o fez saber que, instantes depois, bombardeiros descarregariam sobre o palácio presidencial, levando o ditador Pérez Giménez ao exílio. É deste tempo a intuição inaugural do “Outono do Patriarca” e o casamento com Mercedes Barcha, a mulher que escolheu aos 13 anos. É deste tempo, também, a queda de Batista em Cuba e o início de uma longa relação com aquele país e com o seu líder, Fidel Castro. Plínio e Gabo presenciaram o julgamento dos apoiantes de Batista, acusados de crimes de guerra pela revolução. Mais tarde, aceitaram fazer parte de Prensa Latina, a agência noticiosa cubana. García Márquez trabalharia para ela em Bogotá e em Nova Iorque, onde se demitiu e de onde empreendeu, sem dinheiro e com um filho para sustentar, a lenta caminhada para o México (por terra, Mercedes, Gabo e o pequeno Rodrigo demoraram 15 dias a chegar). Este é o país que o acolhe nos anos subsequentes. Ali vivia quando recebeu o Nobel.

É interessante descobrir que a primeira frase de “Cem Anos de Solidão” lhe surgiu enquanto conduzia rumo a umas férias em família. E que, de imediato, deu meia volta, certo de que por trás da frase se escondia o livro inteiro. Era o início de um ano dominado pela saga dos Buendía e o fim de um longo processo: esta era a obra que há 18 anos sonhava escrever. García Marquez parou de trabalhar. Fechava-se num quarto que apelidara de “Caverna da Máfia” e martelava a sua Olivetti das 8h30 às 14h30, envergando um macacão de operário. Mercedes pediu crédito ao senhorio, ao açougue, à mercearia. Empenhou televisão, frigorífico, jóias, rádio. Ao acabar, as 490 páginas deviam ser enviadas à Editorial Sudamericana, em Buenos Aires. Mas a encomenda custava 82 pesos e Mercedes só tinha 50 na carteira. Seguiu metade. Para o resto, desfizeram-se dos últimos eletrodomésticos.

Foi um sucesso anunciado, que conquistou a fama ainda antes da publicação, em Maio de 1967. Passado pouco tempo, Gabo declarava na imprensa: “Quando acabo de escrever um livro, ele deixa de me interessar.” Ao mudar-se para Barcelona, em finais daquele ano, é já “O Outono do Patriarca” que lhe ocupa o pensamento. Quer renovar-se: “Não quero imitar-me burlescamente.” Na Espanha franquista, privará com Pablo Neruda e, turbulentamente, com Mario Vargas Llosa. Nesta fase, há quem recorde García Márquez como “apolítico”, embora o escritor espanhol Juan Marsé tenha testemunhado o contrário. Marsé fazia parte do júri do 4º Concurso da União de Escritores e Artistas de Cuba, que tencionava premiar o poeta Heberto Padilla, alegadamente “contra-revolucionário”. Desencadeou-se o conflito que levantaria o véu sobre a real posição do regime cubano a respeito da liberdade de expressão. Para exortar os jurados a mudarem de opinião, Fidel deteve-os durante seis semanas. E quando Marsé relatou o caso a García Márquez, este explodiu. Conta Marsé: “Disse-me que eu era um idiota, que não percebia nada de literatura nem de política. A política vinha sempre em primeiro lugar.”

Ao concluir “O Outono do Patriarca” — sobre um ditador na solidão do poder — fez saber que não voltaria a publicar enquanto Pinochet não fosse expulso. Visitou Portugal na hora da Revolução de Abril, acompanhou as tropas cubanas a Angola, manteve o apoio a Fidel Castro mesmo se a repressão e a censura lhe manchavam a reputação, mas disse que não poderia viver em Havana: “Sentiria a falta de demasiadas coisas. Não conseguiria viver com a falta de informação.” No seio das suas amizades estaria o socialista Felipe González e o General Omar Torrijos, o ditador populista do Panamá. Gabo não se deteve a explicar contradições. Certo é que, no discurso perante a Academia Sueca, o vencedor do Nobel em 1982 atacava a inabilidade européia para compreender os problemas da América Latina. No dia da entrega do prêmio, vestia um liquiliqui, traje tradicional caribenho de cor creme, com sapatos pretos, num rombo ao protocolo que a Colômbia — de resto, o país onde a sua fama mais tardou em instalar-se — não esqueceu tão cedo. Começava o seu próprio caminho no poder, segundo a tirada de Fidel: “Sim, claro que García Márquez é como um chefe de Estado. A única questão é: de que Estado?”

O escritor ainda haveria de dar à estampa “Crônica de Uma Morte Anunciada”, “O Amor nos Tempos do Cólera” e “O General no Seu Labirinto”; haveria de ousar a autobiografia em “Viver para Contá-la” ou publicar “Memória das Minhas Putas Tristes”; haveria de fundar a Escola Internacional de Cinema e Televisão de Havana, sofrer dois cânceres, assistir ao recrudescimento da violência no seu país e às execuções numa Cuba que continuava a defender. Em 1997, aos 70 anos, adquiriu a revista “Cambio”, a mais influente na Colômbia, e voltou para uma redação. A memória começava a falhar-lhe. Conta Gerald Martin que, no seu penúltimo encontro com o escritor, na Cidade do México, Gabo disse em tom melancólico: “As pessoas não podem ficar decepcionadas, não podem esperar mais de mim, pois não?” Era o medo de que a sua obra desaparecesse como Macondo, a cidade-personagem para a qual a morte estava escrita. Mas que, contra todos os vaticínios, sobreviveu.

 


Autor: Adolfo de Castro
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Existe 2 comentários para esta publicação
quarta-feira, 21/10/2009 por Neuza Ananiasa
Todos maravilhosos senhores das letras-Fã de Neruda
Goastaria que falasse um pouco sobre escritores bem brasileiros.Eu e Vidas secas.bj
segunda-feira, 19/10/2009 por Leuza bomfim
autodidata
parabens pela matéria sobre G. G. Marquez. vc fez reviver minha adolescencia onde li todos os nomes mencionados na matéria. Neruda, Lhosa ...Cervantes e seu cavaleiro errante. Vc é admirável , continue firme.Bjs
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