CHICO BUARQUE GANHA O PT

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Chico Buarque é o grande vencedor da edição deste ano do Prémio PT de Literatura, um dos galardões mais importantes do Brasil. O júri atribuiu o 1.º lugar a Leite Derramado, em que o conhecido “cantautor” revisita os últimos cem anos da história brasileira (em segundo lugar ficou Outra Vida, de Rodrigo Lacerda, e, em terceiro, Lar, de Armando Freitas Filho). Aqui, o olhar da crítica portuguesa sobre a obra de Chico em artigo publicado no semanário LG em de 03 de Junho de 2009.

CHICO BUARQUE GANHA O PT

Não creio que o brasileiro seja fundamentalmente bom.”

Sérgio Buarque de Hollanda


Cinco anos depois de Budapeste, Chico Buarque regressa à escrita com um romance em tons sombrios. Leite Derramado não é apenas a história de uma família mas também o relato de décadas de História do Brasil. Já dizia Jorge Luís Borges que "o livro é uma extensão da memória e da imaginação".

"Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra". Assim começa o quarto romance de Chico Buarque, um olhar sobre a vida, a partir do fim, movido por um impulso de regresso às origens. Eulálio d'Assumpção, aristocrata arruinado de Copacabana, encontra-se, aos 100 anos, numa cama de hospital, depois de ter sofrido uma grave fractura.

Eulálio é um contador de histórias, sendo a história a sua própria vida, aqui ditada a uma fiel depositária, uma suposta interlocutora que anota cuidadosamente cada palavra. Ao longo do livro, apercebemo-nos que esta mulher pode ser várias pessoas: a enfermeira que cuida de Eulálio no hospital, que se confunde com a filha, Maria Eulália, ou com a ex-mulher, Matilde, falecida nos anos 20.


"Estou pensando alto para que você me escute", diz Eulálio que, logo nas primeiras páginas, lança uma dúvida ao leitor: para quem fala este homem que desmonta à nossa frente a sua vida? Falará apenas para a sua interlocutora ou para si próprio? Na verdade, Chico desenhou nesta história um protagonista complexo, à semelhança do José Costa de Budapeste. Tão complexo como entusiasmante.

Eulálio sofre de um mal, para além daquele que o levou à enfermaria: a saudade de Matilde, sua antiga esposa, da "fazenda da minha feliz infância" ou "da cama do Ritz onde dormi quando menino". Sobre esta personagem, Chico revelou à imprensa a sua fonte de inspiração: a canção "O Velho Francisco", de 1987, sobre as vicissitudes de um ex-escravo alforriado "pela mão do imperador", foi o ponto de partida para o esboço da personagem.

Eulálio também é um velho que conta a sua história mas, em vez de ser um ex-escravo, é um homem de estirpe nobre, na ruína, assim como certa elite brasileira.

O romance constrói-se sobre dois planos a história propriamente dita e o simbolismo do espaço em que se desenrola. O primeiro remete-nos, efectivamente, para o abandono de Eulálio pela mulher, Matilde, quando esta ainda amamentava a filha do casal. A história de Eulálio é contada de forma fragmentada, aos retalhos, ou não fossem estas memórias "um pandemónio" que só ganham sentido porque alguém as ouve ("sem você meu passado se apagaria"). Progressivamente, a saga familiar de Eulálio cruza-se com o segundo plano, uma imagem de um país visto através do olhar amargo de um narrador que transforma esta tragédia numa derrocada irreversível. De certo modo, é inevitável que o plano da ficção, repleto de objectos e lugares, nos permita fazer comparações com o real. À figura ficcional do Xerxes, jogador, nos anos 50, do veterano Fluminense Football Club, somam-se objectos característicos da época, como os aparelhos de vitrola ou "a cerveja gelada na Frigidaire".

Se já no seu anterior romance Chico Buarque havia posto à prova o leitor pela complexidade narrativa, Leite Derramado conquista-nos pelo desenrolar da história que é idêntico à mente senil do narrador centenário. Os avanços e recuos dão lugar à justaposição de histórias em tempos diferentes, conseguindo atingir um efeito realista, e à sobreposição eficaz da ficção com a realidade. O olhar racista das elites e a mestiçagem são dois dos temas privilegiados que dão lugar a verdadeiras cenas tragicómicas protagonizadas por Eulálio que, ao descer ao ambiente da "cidade-dormitório", nem assim perde a altivez aristocrata ("em momento algum perdi a linha"). Deliberadamente ou não, a história da saga familiar de Eulálio é reveladora de um profundo conhecimento, por parte do autor, ao nível cultural e historiográfico. Leite Derramado pode ser, mais do que a história da ruína de uma família aristocrata, uma metáfora de dois séculos de história do Brasil republicano. Visto do lugar do poder em que Eulálio continua a acreditar, tentando resistir amargamente à "escória", a essa "gente desqualificada", dá-se a ver um sem número de conflitos raciais. Para isso contribui a linguagem que, à boa maneira machadiana, usa termos que caíram em desuso, próprios de um herdeiro de classe média como o Brás Cubas diletante ou o jovem burguês Bentinho de Dom Casmurro.

Pela galeria de histórias de Eulálio, podemos encontrar personagens surpreendentes, quase caricaturas.

Senão, vejamos: a mãe de Eulálio, mulher inflexível para aqueles que não se encontram no seu estrato social, tratava sempre os assuntos de família, "como em todas as boas casas", em francês; o pai, senador da República Velha, frequentador dos melhores bordéis de Paris, era perito em dissipar o dinheiro, enquanto cheirava cocaína que, atenção, era "cocaína da pura, que só tomava quem podia"; o tetaraneto, traficante de droga, que, por ironia do destino, é quem paga as despesas de Eulálio. To- das elas partilham o mesmo espaço narrativo com alguns dos mais importantes períodos da História do Brasil: Brasil-Colónia, Brasil-Império, República Velha, período getulista, nova democracia, interrompida na década de 60 pela ditadura militar, e a redemocratização em 1985. Apesar da vasta lista de referências, não se espere aqui um romance demasiado extenso ou em vários volumes. Com pouco mais de 200 páginas, Chico constrói uma história onde encontramos de tudo um pouco e que prima pela concisão, um dos grandes trunfos desta obra onde nada está por acaso ou é supérfluo.

À medida que a narrativa se desenvolve, os espaços da vida do narrador vão sendo cada vez mais exíguos. Do chalé de Copacabana dos seus 20 anos passamos para um apartamento nas traseiras do chalé, seguimos para um apartamento menor na Tijuca, vemos o palacete da família em Botafogo ser vendido, a fazenda de infância transforma-se numa favela e a última morada do narrador é o antigo cemitério onde jaz o avô. Tudo converge para um estado que culmina, simbolicamente, na morte. Em relação ao narrador, o leitor desenvolve sentimentos contraditórios: pena, indiferença, raiva. Mas é de Matilde, cuja vida termina de forma dramática por causa dos preconceitos e dos ciúmes doentios de Eulálio, que se guarda uma imagem inesquecível. É Matilde, ao amamentar a filha (com o leite, símbolo de vida, amargo), que se converte numa imagem obsessiva para Eulálio.

A respeito desta personagem, Leyla Perrone-Moisés levanta uma hipótese bem interessante e a merecer desenvolvimento: e se este livro for, indirectamente, não a história de um homem mas a história de uma mulher, Matilde? Uma história triste, contada pela voz confusa de um narrador, que leva Matilde a juntar-se à galeria de personagens femininas de Chico Buarque. Matilde, mulher espontânea, que viveu uma história triste, à mercê do ciúme masculino, e que, ao longo do livro, atinge uma densidade poética, porque "a respiração de Matilde chamava as ondas".

"Ao passo que o tempo futuro se estreita, as pessoas mais novas têm de se amontoar de qualquer jeito num canto da minha cabeça. Já para o passado tenho um salão cada vez mais espaçoso, onde cabem com folga meus pais, avós, primos distantes e colegas da faculdade que eu já tinha esquecido, com seus respectivos salões cheios de parentes e contraparentes e penetras com suas amantes, mais as reminiscências dessa gente toda, até o tempo de Napoleão". Regressa-se com facilidade ao passado, a esse tempo das origens, através da imaginação. Mas esse é um tempo irreversível, como o leite que se derrama e que não é possível recolher. Assim é a vida, a de Eulálio e a de todos os homens, única, irrepetível. A voz de Eulálio Montenegro d'Assumpção é, de algum modo, a voz de cada um de nós. Em Leite Derramado, Chico Buarque capta esta que é a essência da vida: todos vivemos a nossa história, a história do país, as nossas próprias ficções. Todos regressamos, mais cedo ou mais tarde, às origens, a esse tempo de infância onde, ainda menino, de calças curtas, Eulálio é levado pela mãe a despedir-se do tetravô no hospital.


Autor: Byagn
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Existe 1 comentário para esta publicação
segunda-feira, 15/11/2010 por etiene
primeiro acesso ao livro de Chico atrevés dessa matéria
boa matéria.
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