Não aguentava mais a mesma questão!
Em Django Livre, de fato, ele retrata muito, muito sangue, além de corpos cortados, pedaços de vísceras voando, pessoas chicoteadas e comidas por cachorros. Como se trata de uma vingança (Django, um escravo liberto, quer matar aqueles que o mantiveram em cativeiro e o separaram de sua esposa), o espectador é convidado a torcer pelo herói, a vibrar com ele. Na sala de cinema em que assisti ao filme, algumas pessoas aplaudiam com satisfação cada morte provocada por Django (Jamie Foxx).
Recentemente, o público também vibrou com a vingança de Grace (Nicole Kidman) em Dogville, de Lars Von Trier, ou mesmo com a vingança das mocinhas das telenovelas globais contra as carismáticas vilãs. Ora, embora Grace tenha recorrido a métodos cruéis contra seus opressores, e embora as mais recentes vilãs de novelas tenham chegado inclusive a enterrar as adversárias vivas – algo muito tarantiniano, por sinal –, nenhuma delas foi acusada de explorar a violência, ou torná-la leve, agradável. A acusação contra Tarantino encontra no humor seu principal alvo: tolera-se a vingança, contanto que não seja engraçada. Com a morte não se brinca.
Um motivo para tal crença seria o medo das
consequências (morais) nefastas na sociedade. O fato é que dificilmente alguém
se tornará mais insensível à violência real por ter assistido aos banhos de
sangue em Django Livre. Pode-se culpar, com razão, a grande exposição do
público jovem a imagens violentas, mas aí seria necessário abrir uma ampla
discussão, incluindo as imagens na internet e na TV, a relação do país com
guerras, a paixão pelas armas, a cultura do individualismo, o espírito de
competitividade, a situação econômica etc.
Por isso, as vozes dos espectadores que exigem a moralização das imagens encontram pouca repercussão neste caso. Mais interessantes e mais complexas são aquelas que questionam o direito de se divertir a partir de qualquer tema, inclusive a morte, a exploração dos negros e a crueldade de modo geral. Além disso, atalhos como “videogames foram responsáveis pelo massacre de crianças nas escolas americanas” sempre foram uma maneira rápida e pouco convincente de o governo se isentar de responsabilidade nestes casos, dissociando-se da tradicional cultura belicista norte-americana.
Talvez Django Livre seja “politicamente incorreto”
(curioso, esse termo), mas ao menos ele toma uma precaução, típica da linguagem
pop e autorreferencial, que é de explicitar sua paródia, suas referências. Em outras palavras, afastar-se do real. Ninguém confundiria esta obra com uma
leitura história precisa sobre os fatos, já que Tarantino coloca elementos
suficientes para estabelecer um distanciamento entre a História e sua
representação.
O cineasta realiza com este filme uma espécie de vingança simbólica, pessoal, um acerto de contas com episódios que ele não considera terem ganho um desfecho satisfatório. Não é por acaso, aliás, que nas várias cerimônias em que Tarantino recebeu prêmios por este filme, ele aproveitou para repudiar as formas modernas de escravidão. Estas releituras históricas propostas pelo cineasta lembram a diversão de uma criança com seus brinquedos, seus bonecos simbolizando policiais, xerifes e mocinhos. A partir de personagens e contextos reais, imagina-se a História como se deseja.
Por acaso, Tarantino acredita em um acerto de contas de
homem a homem, como se a escravidão fosse uma questão de indivíduos, e não de
sociedade – este sendo um elemento típico dos faroestes que ele homenageia em
Django Livre. Aliás, a política governamental é um elemento praticamente
ausente de suas obras, aparecendo apenas como questão fantasmática, marginal.
Para ver uma conclusão constitucional e biográfica da escravidão, é melhor
assistir a Lincoln.
Django reserva ao espectador a possibilidade de reimaginar a História, de torcer por novos heróis abolicionistas e de criar um fim sem limites. Ao longo de sua história, Tarantino confere plenos poderes ao personagem, que consegue fazer tudo o que quiser, como quiser, com quem quiser. Este divertido desejo de onipotência faz da História um elemento dinâmico novamente, capaz de atualizar os mitos e encontrar novos símbolos com os quais a geração jovem possa se reconhecer.
Tarantino foge do didatismo e da obrigação documental
para se ater apenas à obrigação moral: dar um “direito de resposta”, simbólico,
à comunidade negra. Ele o faz com prazer, de modo magistral, em um imenso e
épico espetáculo de luzes, corpos e sons. Django Livre é um filme que assume seu
caráter de ficção, de espetáculo, mas também de obra provocadora, complexa, e –
por que não – política.