Cem anos de Francis Bacon

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Ao estudar a obra de Francis Bacon, inevitavelmente há de se falar no obsceno e no belo. Ele, entretanto, nuca perseguiu nem a obscenidade nem a beleza. Sua busca sempre foi a dissecação do humano

Cem anos de Francis Bacon






Que as suas obras tivessem, antes de tudo, um impacto de decreto no sistema nervoso do espectador. Era essa a metaprimeira de Francis Bacon. Atingiu-a sempre. Desde os anos 40, quando começou a expor, até depois de  sua morte, em 1992. Começou por causar horror e acabou por receber a admiração do mundo artístico. A maior antologia dedicada ao pintor, que na semana passada foi inaugurada no Museu do Prado, em Madrid, no ano em que se comemora o centenário do seu nascimento, é mais uma prova disso. Organizada em 11núcleos (que obedecem a uma ordem estritamente cronológica), a mostra, patente até 19 de Abril, pode mesmo ser vista ao ritmo das pulsações cardíacas que cada quadro acelera ou diminui ao ser olhado.O corpo reage. A cabeça pensa depois. Hipnotizada, vai procurando saciar-se com os universos que mais a atormentam. Não é masoquismo. É deixar que o olhar não interprete mas sinta e deixe que esses estímulos sensoriais se propaguem. É uma relação química, quase. Está carregada de energia. A arte também se vive. “Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion”, de 1944, fixa-se na retina à entrada da primeira sala. “Animal” é o título deste primeiro núcleo expositivo. Estamos perante o cerne de toda a obra de Bacon: a redução do homem à sua condição única de animal. Metamorfose talvez seja o termo mais adequado para explicar aquilo com que se confronta o espectador, da primeira à última das 78 obras expostas naquela que é a mostra temporária mais cara do Prado dos últimos dez anos. A palavra não se diz. Vê-se. E vê-se!

neste primeiro trítico, capaz de transmitir intensidade logo a partir da cor. O laranja que lhe serve de fundo e que abundantemente Bacon vai usando com o desenrolar dos anos. Tal como se verá depois, mais à frente, no verde, no azul, no rosa... Mas é na agonia, no abismo e, sobretudo, no grito que se solta da imagem distorcida de um ser humano transfigurado num animal mortificado que a metamorfose faz disparar o ritmo cardíaco. A morte é o fim. Um ponto final. Não há duas vidas. Deus não existe. É perante esse final que ali, na década de 40, Bacon atira para a tela pintada a óleo seres despidos de um corpo humano. Agarra-lhes na cabeça e no rosto e retira-lhes a alma para lhes oferecer o nada, que até pode significar o tudo, o tudo e o nada, que lhes fixa na boca, nos dentes: “Head I”, “Head II”, “Head VI”... “Study from the Human Body”.

 



A transformação consuma-se mais à frente. Há um “Chimpanzee”, já houvera um “ Study of a Dog”, em contraste ou em comparação com vários estudos de nus masculinos. E, mais à frente, ainda haverá “Paralytic Child Walking on All Fours”, um dos mais poderosos trabalhos de Bacon. Perante todos, o ritmo cardíaco assemelha-se a uma convulsão.




Estamos já na década de 50, altura em que Bacon inicia um trabalho obsessivo sobre a figura do Papa Inocêncio X a partir do retrato do pontífice realizado por Velázquez (um dos seus mestres de sempre). Abrandam as pulsações. O cérebro quer encontrar as diferenças e as semelhanças. Apalpar terreno no departamento das memórias. Procurar informação adicional nos textos inscritos nas paredes da quarta sala, designada por “Apreensão”. O olhar acalma o corpo. A série “Man in Blue” contribui para uma reflexão, mais do que para uma explosão de sentimentos. É a simetria das obras que se instala, as linhas e traços que percorrem cada quadro, os pontos de luz, a mestria de Bacon... É tempo de solidão, de isolamento, as questões que se colocam são existenciais em toda a sua vastidão. Estamos perante um homem só consigo próprio. Vazio. O tempo é o da maturação.

Maturação necessária para aguentar a vibração febril que emana dos trabalhos que se agrupam sob o título “Crucificação”: “Three Studies for a Crucifixion” (1962) e “Crucifixion” (outro trítico de 1965), encimados pelo retrato de Inocêncio X considerado como definitivo por Bacon. É o grande momento da exposição que a Tate Gallery, em Londres, já albergou e que o Metropolitan Museum de Nova Iorque irá receber a seguir ao Prado. O sistema nervoso que o pintor inglês nascido na Irlanda (1909/1992) tanto quis exaltar treme. De nervos?, de uma angústia que desconhece?, ou porque a força das imagens entram dentro dele sem filtro? Chacina, matança, guerra... Pedaços de carne humana esventrados num talho qualquer. Carne para canhão, carne comestível como a de qualquer outro animal. Carne. Sangue. Violência. A insanidade mental do homem que se come vivo, sistematicamente, em guerras que Bacon presenciou. Julgamentos, testemunhas, cúmplices e um Papa todo-poderoso enjaulado, efeminado, sinistro, altivo num trono pesado. O campo de visão espraia-se no branco e no vermelho. Retém aquela apoteose à morte como qualquer coisa de verdadeiramente épico. E segue em frente. Viaja até Tanger, e o calor das tonalidades do Norte de África tranquiliza-lhe o olhar.





A CONDIÇÃO animal do homem é uma questão central no trabalho de Bacon. É a partir de estudos rigorosos sobre o movimento humano que nasce, entre muitos, este “Paralytic Child Walking on All Fours” . Já o retrato de Inocêncio X,a partir de Velázquez, é das suas mais caras obsessões




Tomando literalmente o pulso, o visitante sente mais lentas as pulsações que já lhe alimentaram o corpo. Nos anos 60 ainda, mas dentro de um dos universos mais fantásticos de Francis Bacon: o retrato. Os espasmos nervosos são aqui de admiração. Há uma espécie de êxtase que percorre o tal corpo ao ver na tela o rosto de figuras e figuras (majoritariamente, o grupo de amigos de Bacon e ele próprio) distorcido, difuso, confuso, quebrado, ocultado, duplicado no espelho. De tão brutal, torna-se nítido, perfeito na sua desestruturação planeada ao milímetro num ateliê caótico, já revelado ao público numa outra sala da mostra. A apropriação da imagem fotográfica como base de trabalho já é nessa altura conhecida do espectador, que, avançando para o final da exposição, se confronta cada vez mais com o processo criativo, refreando as descargas emocionais.

O diálogo com a morte toma então as proporções da narrativa, aproxima-se da encenação teatral, associa-se à poesia, roça o cinema panorâmico e apresenta-se em forma de tríticos. As dimensões (198 x 147,5 cm — a medida da porta do ateliê do pintor) das telas ampliam a cor, o drama. O sangue volta a correr mais depressa no corpo de um espectador que se sente cada vez menor. É então que o círculo se fecha para deixá-lo respirar, embora inquieto, o tempo que for preciso. “Second Version of Triptych 1944”, uma obra realizada em 1988, encerra a mostra como a começou. O grito e a agonia seguem para casa. Bacon deixa-se ficar no corpo de quem o quiser sentir.


Autor: Adolfo de Castro
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Existe 2 comentários para esta publicação
quinta-feira, 12/2/2009 por Noemia Meireles Nocera (pseudônimo Morgana Gazel)
Cem Anos de Francis Bacon
Aqui sente-se a arte que é descrita e a arte da descrição da arte. Jamais lí algo tão instigante, tão tocante, tão desesperante... Falta-me a palavra capaz de dar conta do que sua matéria provocou em mim. Parabéns Adolfo!
quinta-feira, 12/2/2009 por patricia
Obrigada!
Ao ler sua matéria sobre esta mostra, senti uma emoção como se estivesse apreciando a mesma...Obrigada! Impossível viver sem arte!
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