O aumento da expectativa de vida e os novos recursos de beleza

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Com mais ou menos floreados, os cosméticos sempre se arvoraram em Ponce de León — o espanhol do século XVI que teria descoberto a mítica fonte da juventude. Anos após ano, cremes e poções prometeram às mulheres beleza, viço, sensualidade e, por implicação, amor. Independentemente dos méritos dos produtos, do ponto de vista comercial a coisa resultou (com o perdão do trocadilho)... lindamente. Afinal, a esperança é mais difícil de jogar fora do que um bumerangue velho. Estamos durando mais. E espera-se que o saibamos fazer melhor. Em 2050, a expectativa de vida para a mulher brasileira vai rondar os 85 anos. Beleza é um conceito camaleônico e algumas marcas de cosmética têm dado o seu empurrão.

O aumento da expectativa de vida e os novos recursos de beleza

Porém, o marketing de uma marca, a Dove, reciclou o pregão. Criou a «Campanha pela Beleza Real». Segundo a empresa, trata-se «de uma iniciativa global, ainda no início, para catalisar e ampliar a discussão e a definição da beleza.» Ou seja: a marca começou a soprar a ideia (música para os ouvidos de inúmeras mulheres) de que a beleza é uma quimera forjada pela «mídia» — e tenta aposentar o padrão, delineando modelos plurais de beleza.

Não, não se trata de realçar a formosura interior — como disse o outro, «beleza interior é lingerie». A partir de agora, somos todos belos. Já há meses, a marca lançara um creme com cartazes de «mulheres autênticas» — atraentes, mas de vários tamanhos. E anunciara produtos para os cabelos, com centenas de mulheres de perucas louras idênticas (descritas desdenhosamente como «o gênero que aparece nas revistas»), que arrancavam as jubas artificiais e celebravam o seu cabelo genuíno (meticulosamente penteado e tingido). A revista «Advertising Age» (a bíblia do setor) proclamou que a campanha minava «décadas de publicidade, explicando às mulheres que estas são lindas como são». Mas a Dove aprofundou o safanão no paradigma, com um vídeo «online» de 75 segundos («Evolution»), que apresenta uma mulher aparentemente vulgar. Em 20 segundos, maquiadores e cabeleireiros fazem por ela o que a fada madrinha fez pela Cinderela: floresce uma beldade de olhos faiscantes, cabelos em cascata, feições esculpidas em mármore e pele de pêssego. Depois, entram em cena o mouse do computador e o abracadabra digital. Por fim, a Vênus nascida daquela concha postiça povoa «outdoors» com o carisma da Gioconda. A legenda: «Não admira que a nossa noção da beleza seja distorcida.» Até ontem, o vídeo atraíra 10 milhões de visitantes no Youtube (e no www.campaignforrealbeauty.com). O conceito de beleza é assim tão fixo — ou, ao contrário, tão camaleônico? Já o grego Hesíodo sentenciava: «Quem é belo é querido, quem não é belo não é querido.» O que desencadeou a Guerra de Tróia? Uma espécie de concurso de Miss Universo, vencido por Helena. Outro ponto sugestivo: mesmo com os metrossexuais, a cosmética continua um santuário do segundo sexo — e repleto de alçapões. Como lamentava Agatha Christie: «A vida é dura. Os homens não gostarão de nós se não formos belas — e as mulheres não gostarão se o formos.»

Até agora, envelhecer era como ser-se punido cada vez mais por um crime que não se cometeu — e o sonho secreto dos adultos correspondia a uma espécie de adolescência vitalícia. Um anseio, aliás, recente, como indica o novo romance de Ian McEwan, situado em 1962: «Aquela ainda era a época — prestes a terminar — em que ser jovem era um estorvo social, uma marca de irrelevância, uma situação ligeiramente embaraçosa para a qual o casamento era o início de uma cura.»

Ora, envelhecer não é assim tão mau, quando se pensa na alternativa (e, quando somos muito velhos, ninguém nos vem chatear com seguros de vida...). E estamos durando mais. Até 2050, a expectativa da vida das brasileiras (hoje de 75 anos) saltará para 85 anos. (A dos homens, hoje nos 72 anos, avançará para os 81.) No passado, a longevidade aumentou devido a progressos básicos, como o acesso universal a vacinas ou à água potável. Agora, será alargada graças à profilaxia através do DNA, ou cirurgias dantes tecnicamente impossíveis. O «papy boom», o choque demográfico que o envelhecimento da população provocará no futuro imediato (contraponto ao «baby boom» pós-II Guerra Mundial), terá um impacto não equacionado na economia, afetando os sistemas de aposentadoria. Comemorar o centésimo aniversário, atualmente privilégio de 0,01% da população, será uma façanha bem mais comum em 2050. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o número de centenários no planeta rondará os 2,2 milhões, 15 vezes mais do que hoje. Bom, quando ouço pessoas a discutir o controlo da natalidade, lembro-me sempre de que fui o quinto. Contudo, convém não esquecer de que a trovejante ordem «Crescei e Multiplicai-vos» foi dada quando a população mundial consistia em duas pessoas. Uma jornalista, Alex Kuczynski, publicou um livro-réplica: Beauty Junkies. Alex defende as cirurgias, o Botox, as lipoaspirações. E afirma que as plásticas são um novo feminismo e um novo ativismo político. A argumentista Nora Ephron (de Sintonia de Amor e Um Amor Inevitável) contra-atacou com uma sátira: «I Feel Bad About My Neck» (top-ten do «The New York Times»), onde, todavia, admite que as mulheres «precisam» de pintar os cabelos.

Haja saúde? Se há poucas gerações o flagelo mais temido era a fome, o maior fantasma dos países ricos é agora a obesidade. As top-models, magras como hologramas, estão a ser intimadas a se empanturrarem ao menos com uma azeitona por dia — e só se recusam aquelas cujo cérebro é do tamanho de uma ervilha. Para a esteticista Lurdes Jesus, as dietas da moda, que baniam classes inteiras de alimentos como «serial-killers», perderam credibilidade. Hoje, os especialistas aconselham a não descartar hidratos de carbono, gorduras e proteínas. Na hora H, o próprio ovo estrelado foi salvo da cadeira elétrica.

Em «Survival of the Prettiest», Nancy Etcoff parte a louça das ilusões: a beleza realmente existe e, pior ainda, a desnaturada Mãe Natureza distribui-a de forma desigual. Até os bebês, quando lhes mostram fotos de desconhecidos, fixam as caras que os adultos consideram mais belas. A beleza não é uma mera ficção social, e nem toda jovem é bonita da maneira que é. Como o resto da lotaria genética, a beleza é injusta. Todos ficam aquém da perfeição — mas enquanto alguns são limítrofes, outros jazem nos antípodas. Recordando Freud, «anatomia é destino». Os parâmetros estão desmoronando? Umberto Eco, na História da Beleza, diz que no século XXI reinará o ecumenismo: «Trata-se de ensinar a interpretar o mundo com olhos diferentes, a gozar o regresso a modelos arcaicos ou exóticos — o universo do sonho ou das fantasias dos doentes mentais.» Talvez, mas, mesmo com «as fantasias dos doentes mentais», é provável que continuem a vingar certas regras. Como o paralelo entre o uísque e os seios de uma mulher: um é pouco, três é de mais. Ficará mais difícil definir o bom gosto? Depende. Como sempre, de mau gosto, é perguntar o que é chique. E chique é não responder. Afinal, a moda é aquilo que seguimos quando não sabemos quem somos. E, como confessou Coco Chanel, «a moda é feita para sair da moda».

Eco tem razão quanto ao sincretismo, até ecológico. Que o diga Elettra Rossellini, a previsivelmente fotogênica filha de Isabella Rossellini e neta de Ingrid Bergman. Aos 23 anos, ela convenceu a poderosa Lâncome a ungi-la como ideóloga itinerante de um programa contra as emissões de dióxido de carbono — ao mesmo tempo em que pavoneia produtos de uma linha «eco-chique», como o Primordiale Cell Defense, um soro antioxidante que protege a pele contra a poluição.

Numa conferência sobre manipulações biológicas, ouvi uma filósofa jurar de pés juntos que jamais faria uma plástica nem pintaria o cabelo. Mas ela admitiu que pagaria qualquer preço para ter mais 15 pontos de QI. Bem, como suponho que esteve implícito neste texto, parece que a verdadeira confiança não depende da beleza, mas exige autoconhecimento — a mais difícil forma de conhecimento...


Autor: Celso Mathias
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